Numa conversa desta manhã, sem nada a ver com o assunto que estava em discussão, declarei ser «laurentina» por ter nascido na velha Lourenço Marques, a belíssima cidade que deixei muito antes de ela se transformar em Maputo. Foi então que alguém me deu como prenda (obrigada, Inês Menezes) um texto de João Pina Cabral: O Retorno da Laurentina. A Simbolização das Relações Étnicas no Moçambique Colonial e Pós-Colonial.
Bela leitura para um fim de tarde de fim de Verão, da qual deixo apenas um delicioso e significativo excerto de uma obra escrita nos anos 20 do século passado, que retrata, segundo resumo de Pina Cabral, «uma reconstrução simbólica da escravatura e da opressão», «uma formulação da exploração colonial segundo o que poderia ser designado uma metáfora gastronómica».
«Pikinini [...] contou-me um dia o que é que as pessoas do Bilene pensam dos Brancos. Foi pouco depois da deportação de Gungunhana:
– O Gungunhana está morto. Os Portugueses comeram-no!
– Como é isso?
– Claro! Os Portugueses comem carne humana. Toda a gente sabe isso. Não têm pernas; são peixes (tinhlampfi). Têm uma cauda em vez de pernas. Vivem na água.
– Então como é que eles conseguem lutar convosco e bater-vos, se são peixes e não têm pernas?
– Ó! Os que vêm lutar contra nós são os homens jovens; esses têm pernas. Levam-nos e põem-nos num
vapor que vai para muito, muito longe. Esse vapor chega a uma grande rocha que está rodeada por água
de todos os lados. Isto é o seu país. Somos retirados e levados para uma ilha, enquanto os soldados vão e disparam para anunciar aos grandes homens-peixe Brancos que chegámos. Escolhem um de nós e fazem um pequeno corte no seu dedo mindinho para ver se está suficientemente gordo; se não estiver, põem-no dentro de uma grande caixa cheia de amendoins que ele tem que comer para ficar mais gordo. Quando já
está suficientemente gordo, põem-no dentro de um pote grande e comprido do tamanho de um homem, que está incandescente. Sabemos estes detalhes porque um homem, Ngomongomo, nos deu a explicação
completa. Ele tinha sido apanhado, mas na estrada os seus deuses ajudaram-no; foi coberto por uma erupção de borbulhas que era tão revoltante que foi deixado na ilha, e depois trazido de volta. Ele viu
tudo. A princípio recusámo-nos a acreditar. Agora sabemos que é a verdade!
Aparentemente Pikinini falava comigo em toda a seriedade e estas idéias absurdas eram aceites como factos pela maioria dos seus conterrâneos no Bilene. Não é surpreendente que, enquanto um número considerável de Europeus acredita que os Negros são todos canibais, estes selvagens, por seu turno, acreditam exatamente a mesma coisa de nós!
Antigamente, parece que os Thonga acreditavam que todos os Brancos, não só os Portugueses, moravam na água. Dizia-se deles que tinham olhos à frente e atrás e que viam para todos os lados, de tal forma que era impossível escapar-lhes. Tinham o costume de raptar Negros e levá-los para longe.»
(Henri A. Junod, The life of a South African tribe, 1º ed., 2 vols, Nova York, University Books, 1962 [1927], vol II, pp. 353-354.)
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1 comments:
Hoje somos mais aves, que Soares acabou com a Marinha Mercante.
Alguns de nós deixaram de comer criancinhas e passaram a dedicar-se aos frangos, como sabe.
Mas continuamos a ir em busca de qualquer ilha onde nos seja possivel comer todos os dias.
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