Do texto de Sandra Monteiro em Le Monde Diplomatique (ed. portuguesa, Julho de 2014:
«Desgraçadamente, a crise iniciada em 2008 já dura há tempo suficiente para a investigação científica poder disponibilizar evidência empírica reveladora das consequências de uma ideologia poderosa em acção. O neoliberalismo austeritário, em particular o exercido sobre fundo dos constrangimentos da União Europeia e do euro, tem vindo a reconfigurar de alto a baixo as sociedades que, apesar de todos os defeitos, se estruturavam a partir de valores democráticos e igualitários e dependiam, para os defender, da forma como cuidavam dos seus serviços públicos e das suas protecções sociais e laborais. Neste sentido, a transformação em curso tem um pendor totalizante, sobre toda a sociedade, mas, ao apoiar-se sobretudo numa desvalorização interna, salarial, ganha em ser observada pelo prisma do mundo do trabalho e das relações laborais.
No mês de Junho, o Observatório das Crises e das Alternativas do Centro de Estudos Sociais reuniu, no colóquio intitulado "A Transferência de Rendimentos do Trabalho para o Capital", um conjunto de investigadores que partilharam conclusões sobre a desvalorização do trabalho e sobre a perda de instrumentos na relação laboral que permitiriam contrariar essa desvalorização. Entre muitas outras informações, assustadoras mas não surpreendentes, ficou-se a saber que o peso do trabalho (por conta própria e por conta de outrem) diminuiu de 53,2% do produto interno bruto (PIB), em 2007, para 52,2% do PIB, em 2013, ao passo que o excedente de exploração (indicador que reflecte a remuneração do capital) aumentou, no mesmo período, de 27,8% para 29,7% do PIB (sendo este último valor, aliás, o mais elevado desde 1995). Estes dados, apresentados pelo economista Pedro Ramos, foram depois objecto do seguinte cálculo por parte do «Dinheiro Vivo»: a "crise tirou 3,6 mil milhões aos salários e deu 2,6 mil milhões ao capital"[1].
É certo que a narrativa de quem defende a austeridade diz que todos estes "ajustamentos" e "sacrifícios" são para "consolidar as contas do país" e "resolver o problema da dívida". Mas, passados tantos anos de chumbo, cumprir as metas orçamentais dos tratados europeus continua a ser uma miragem (ou uma tragédia incalculável, se feita, como é previsível, à custa de cortes inimagináveis no trabalho e no Estado social); e a dívida continua a crescer a um ritmo galopante e totalmente insustentável. Para que serviu e serve a crise, portanto? Justamente para concretizar esta transferência de rendimentos do trabalho para o capital, onde cada vez se acumula mais riqueza para gáudio dos grandes accionistas, a pretexto de um "estado de necessidade" que teria apenas a ver com "maus comportamentos" adoptados em Portugal, e não com as regras da arquitectura europeia e monetária.»
Na íntegra AQUI.
[1] 21 de Junho de 2014, disponível aqui.
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