Primeira parte do artigo de Clara Ferreira Alves, na «Revista» do Expresso de ontem:
«Vi o Barroso na televisão. Nunca me lembro de o ver porque passamos o tempo a ver o Barroso na televisão, “Mr. Baroso” em inglês, “Mr. Baroso” this, “Mr. Baroso” that, um estrangeiro. Se quisermos ser cultivados, um estrangeirado. “Mr. Baroso”, para os portugueses, está de passagem. Costumo ver a CNN e já o apanhei por lá. Lá estava o Barroso a ser entrevistado por Richard Quest, em Nova Iorque. “Quest Means Business”. O Quest tem um programa sobre os grandes homens e as grandes decisões deste mundo, área economia e finanças. Não existe, neste mundo, outra prioridade. Falando num inglês jovial, aperfeiçoado pelos anos e a prática, “Mr. Baroso” parecia o filho mais velho e bem-sucedido de uma alegre e feliz família oriunda do que “Mr. Baroso” chamou uma vez “o oásis”. O oásis era tão verde, tão fresco no meio do deserto, que logo a seguir ele mudou-se para a aridez da Europa. Recebeu a medalha presidencial por ter desertado.
Ouvi-o, inchado de orgulho, reluzindo, todo cheio de som e fúria como uma sinfonia de Beethoven na apoteose e não como uma personagem de tragédia shakespeariana, (...) life is a tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing, a vida é uma lenda contada por um idiota cheia de som e fúria e significando nada (Macbeth). Reparei que ele parece não ter reparado em nada do que nos aconteceu enquanto cavalgava o deserto europeu. Reparei que quando um homem passa de anónimo a mediano e depois a importante, e de importante a muito, muitíssimo importante, VIP, tratamento especial e tudo isso, esquece com facilidade. A amnésia do poder, para a qual os cortesãos contribuem diariamente com a dose de manteiga. Na boca dele foram dez anos maravilhosos e difíceis ao leme da nave Europa em que nem tudo correu sempre bem mas a maioria das coisas correu bem. E, triunfo dos triunfos, impediu-se que a Europa, a União Europeia, a zona euro, se partisse aos bocados. Ficou inteira, os países ficaram inteiros e democráticos, incrivelmente democráticos, e toda a gente está feliz. “Mr. Baroso” nunca usou a palavra Portugal, intuindo, com um resquício de consciência, que nem toda a gente é feliz no oásis. A austeridade não foi uma experiência falhada. Como todas as experiências de laboratório, implicou a morte e mutilação de cobaias, mas como fazer avançar a ciência e o método científico sem o sacrifício dos ratinhos? A humanidade é que ganha, e a humanidade são muitos enquanto os ratinhos são poucos. Cobaias involuntárias. Isto da Europa e de a conduzir é assunto muito difícil, se as pessoas soubessem, são muitos países, muitos problemas, etc., um homem empenha-se e sofre.»
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