3.4.15

Vou-me licenciar por obra e graça do Espírito Santo



Uma Redacção da Guidinha, de Luís Sttau Monteiro.

«Nestas coisas da vida uma pessoa ou tem sorte ou não tem eu cá por mim tenho de confessar que não sou das que tiveram mais sorte e tudo porque comecei a tirar a minha instruçãosita primária antes das reformas contra-reformas sugestões de reformas propostas de reformas discussões sobre reformas questões sobre reformas estudos sobre reformas esperas por reformas e o mais que há sobre reformas e o resultado deste meu azar de ter começado a ir à escola antes de tudo isto foi que tive de estudar uma data de coisas para fazer exame da primeira classe mais uma data de coisas para fazer o da segunda classe mais uma data de coisas para fazer o da terceira classe e nem digo quantas coisas para fazer o da quarta classe para verem como as coisas eram tenebrosas até tive de aprender a ler para tirar a quarta classe o que mostra como a gente era perseguida torturada e maltratada nos tempos antigos se no meu tempo já andassem estas reformas todas no ar eu tinha-me safado muito melhor para começar não tinha tido aulas durante metade do ano por causa da reforma e tinha passado para a segunda classe sem saber fazer contas de multiplicar vai na segunda classe com uns sarilhitos tinha passado para a terceira sem saber fazer contas nem de multiplicar nem de dividir e para entrar no liceu sem eles darem por isso arranjava-se uma dispensasita de exame por não saber ao certo como é que ia ser a reforma é claro que no liceu avançava da mesma maneira não tinha aulas por falta de professores não tinha aulas porque os professores faltavam não tinha aulas porque tinha de ir à cantina não tinha aulas porque os professores estavam reunidos a tratar dos interesses superiores dos alunos não tinha aulas porque os alunos estavam reunidos a tratar dos interesses superiores dos professores não tinha aulas porque os pais se reuniam a dizer que estavam a puxar de mais pelas cabeças dos filhos não tinha aulas porque havia uma grande reunião a pedir ao ministro para não haver aulas não tinha aulas porque era dia de feriado não tinha aulas porque o ministro tinha medo de mandar a gente às aulas não fosse a gente fazer-lhe barulho à porta de casa não tinha aulas porque não me apetecia ir às aulas e ninguém podia mandar-me ir com medo de que eu não fosse apesar da ordem e lá se ia a autoridade não tinha aulas porque não estava na moda haver aulas enfim o que eu quero dizer é que acabava por entrar na faculdade que é para onde eu quero ir sem ninguém perceber que eu não sabia ler nem fazer contas de multiplicar e de dividir com as coisas assim eu tenho a certeza de que chegava ao fim sem abrir um livro o que até me facilitava a vida porque se me obrigassem a abrir um livro eu estava frita por não saber ler e isso de ir às aulas era coisa que eu não fazia porque havia de arranjar maneira de lá não pôr os pés umas vezes não ia porque não havia professores outras vezes não ia porque não gostava deles outras vezes não ia porque estava à espera que fosse resolvido o problema dos transportes em Alcácer do Sal outras vezes não ia porque era dispensada de ir enquanto não viesse a reforma e outras vezes não ia porque não ia e pronto ninguém tem nada com o que faço enfim chegava ao fim do curso e davam-me um canudo todo escrito em latim e um emprego pago em dinheiro português corrente como eu gostava de ser médica porque gosto muito daqueles filmes que há na televisão com aqueles médicos bestialmente simpáticos que fazem discursos às pessoas e que as curam com palavrinhas mansas e compreensão ia para um hospital trabalhar talvez na cirurgia é claro que ao princípio matava umas pessoas para descobrir onde é que elas têm o apêndice e o fígado mas isso que importância tem neste mundo em que há gente a mais? com o tempo e com umas buscas bem organizadas acabava por saber onde é que estava o apêndice de cada um e cortava-o tão bem como se tivesse aprendido porque não há nada como o saber adquirido pela experiência eu calculo que me bastariam duzentas pessoas para ficar a operar apêndices quatrocentas para operar estômagos e umas quinhentas ou seiscentas para operar cabeças ao todo com umas mil mortesitas ficava a cirurgiar tão bem como qualquer que tivesse estudado e não tinha perdido o meu tempo em escolas faculdades e outras velharias o meu azar foi ter ido para a instrução primária antes das pessoas começarem com isto das reformas que vai haver mas não me perco por isso não senhor que não estou para ser prejudicada por coisas de que não tenho culpa nenhuma para já declaro aqui que para o ano não vou às aulas e que se me quiserem chatear vou tocar tambor em frente da casa do ministro e dar berros até ele ficar acagaçado e me dispensar com quatro valores que é o que eu costumo ter escrevendo nos pontos umas coisitas que oiço em casa e de exames nem me falem o que eu quero é uma reforma ampla e boa que não me obrigue a estudar até já ando a combinar cá com uns amigos uma reivindicação que é o ministro dar à gente o canudo logo à nascença montando um posto de entrega de canudos nas maternidades para poupar trabalho aos funcionários e para reduzir a burocracia que está cada vez pior sim porque não se entende esta exigência burocrática de a gente ter de se inscrever em escolas a que não vai para fazer exames que não faz e passar de ano quando a gente passa sem ter de fazer nada para isso neste país há a mania da burocracia.»

Luís Sttau Monteiro, in A Mosca, 22 Junho 1974.
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