Excertos de um grande texto de Alexandra Lucas Coelho no Público de hoje:
«Portugal largou Cavaco como se mudasse de pele. Nenhuma transição desde o fim da ditadura gerou este alívio, quase uma libertação nacional. Marcelo tomou posse do momento, impaciente de optimismo e ecumenismo: apaziguar, unir, sorrir, curar. Descendo a minha rua, vi lágrimas no meio do povo, aos pés da Assembleia. No item empatia, foi a passagem do zero para a maioria absoluta. E aí vai Portugal para a Primavera de 2016, cheio de fé renovada.
Fé em cima de amnésia, toda uma tendência. Portugal erra entre aquilo que larga e aquilo a que se agarra, de qualquer das formas sem pensar muito. (…) Celebrar os Descobrimentos será um suplemento de ânimo sempre à mão; já ir ao fundo do que foi o Império implica enfrentar o que os portugueses também foram/são, ou afinal não. (…)
O discurso da posse integrou os lugares comuns habituais, uns para a direita, outros para a esquerda, com a novidade de um tom caloroso, e o recuo a um saudosismo messiânico. Por exemplo, Marcelo enumerar as singularidades nacionais, e à pobre da saudade, que mal se aguenta nas canetas, suceder a “crença em milagres de Ourique”. Imagino resmas de portugueses sub-40 a pesquisarem milagres de Ourique no telemóvel. Entretanto, o orador citava já aquele “Herói Português do século XIX” segundo o qual “este Reino é obra de soldados”. Mais resmas de portugueses não estariam a ver quem seria esse herói, mas com certeza o presidente de Moçambique, saudado no parágrafo anterior, percebeu: porque o tal herói é nada menos do que Mouzinho de Albuquerque, que no século XIX capturou e desterrou Gungunhana, futuro mito da resistência para os moçambicanos. Em resumo, perante o ex-colonizado, Marcelo citou o colonizador vencedor, não aludindo ao vencido, e Portugal apareceu como reino e obra de soldados. Tudo isto, rematado pela frase “converter o Império Colonial em Comunidade de Povos e Estados independentes, prometendo a paz, o desenvolvimento e a justiça para todos”, sem uma palavra sobre a violência desse império, cujas consequências se mantêm vivas até hoje, como sabe quem conhece países da CPLP. O império passa suavemente a CPLP, nenhum sub-40 terá nada para googlar, em breve ninguém saberá do que aconteceu a não ser em calhamaços, que em breve ninguém lerá. (…)
Grande não seria Portugal romper o ufanismo? De que adianta suturar, unir e rir, se por baixo a coisa continuar preta? Enquanto alguém quiser o pastiche de uma nau ou um museu para “celebrar os Descobrimentos” não teremos avançado. Portugal continuará a repetir os velhos mitos que o confortam e adiam, ora desconfiado, ora ufano, nunca mudando o ponto de vista. (…) Incorporar esse refazer da história nas escolas, na política, na diplomacia, sem saudade e sem lamento, seria a coragem que ainda não houve.»
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1 comments:
As "loas" sobre a tomada de posse do pretenso anti-Cavaco na generalidade dos meios de comunicação social escondem um discurso presidencial mal cerzido e aparentemente soft mas onde o belicismo, o colonialismo, a intolerância religiosa e as guerras de "pacificação" contra os infiéis mouros e os então considerados selvagens e "primitivos" cafres são enaltecidas, para lá das cerimónias "ecuménicas" e do paternalismo pretensamente bonacheirão. O que Marcelo de facto apresenta como "cimento" são "a Espada, a Fé e o (perdido) Império" Por entre a generalidade das loas, o texto de Alexandra Lucas Pires é assim uma rara excepção.
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