«O clássico "1984", de George Orwell, tornou-se, de um momento para o outro, no livro mais vendido na Amazon. Talvez não seja uma surpresa.
Em "1984" encontram-se ecos do mundo de hoje: alguém nos está sempre a ver ou a escutar os outros, há guerras sem fim, o ódio e o medo cruzam-se numa espiral destrutiva, onde refugiados morrem no mar que funciona como um muro muito europeu. (…)
Chegámos ao fim de um ciclo. Mas ainda não se percebe bem que mundo está a ser construído. Por um lado, é evidente que a conjugação do nacionalismo económico com a desregulação dos mercados patrocinados por Trump e pelos seus mentores, a que se junta a tentativa de implosão dos pilares tradicionais da democracia (forte poder judicial e forte imprensa) tem uma lógica: está a jogar-se um novo estágio da luta entre o capitalismo de mercado e o capitalismo e Estado de que a Rússia e a China são símbolos maiores.
Por outro lado, assiste-se a algo que a célebre capa da "Der Spiegel" (com Trump com uma espada na mão e a cabeça cortada da Estátua da Liberdade na outra) define: este é um presidente que não respeita as decisões judiciais, ou seja, a divisão de poderes onde se sustenta o sistema democrático. Não há dúvidas: foi eleito por cidadãos que queriam castigar a política de Washington e que desejavam a eleição de um homem forte. (…)
Durante anos a superioridade da sociedade e cultura americana, aliada as novas tecnologias fez com que a globalização parecesse infinita. E muito do trabalho de exportação desta "modernidade americana" e da sua ideologia de neoliberalismo foi feita por académicos e intelectuais formados nos EUA, que tinham ligações as elites dos seus países de origem. (…)
Novas visões políticas estão na forja. Trump é um peão dessa mudança: busca uma nova pele para o capitalismo liberal fingindo ser a resposta aos deserdados da globalização. Mas o que propõe é um capitalismo sem fronteiras, como se John Wayne voltasse à Terra e tentasse conquistar novamente a última fronteira. Só que esta é hoje diferente.»
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