«“A realidade acaba sempre por derrotar a ideologia, e isso projeta-se com uma força tal contra a retórica daqueles que no Governo querem realizar a revolução socialista que eles acabam por perder o pio. Ou fingem apenas que piam, mas são pios que não têm qualquer credibilidade porque não são mais do que jogadas partidárias.” Quem se surpreendeu com o Cavaco da Universidade de Verão do PSD deveria recordar que foi disto, e deste mesmo tom de arruaça, que se fez a maioria das suas intervenções públicas destes longos, muito longos, 21 anos de cargos políticos, especialmente os dez em que foi primeiro-ministro. Além da muita gente que ainda acredita que este tenha sido o mais institucional dos Presidentes, é o próprio Cavaco que parece andar há décadas a autoconvencer-se de que é, e foi, um homem "ponderado e sensato, com equilíbrio e racionalidade", que "não pode deixar-se arrastar por pulsões emocionais ou afetar pelas tensões" (prefácio a Roteiros VII, 2013).
O homem que de si próprio se atreveu a dizer que “para serem mais honestos do que eu tinham que nascer duas vezes” (campanha presidencial de 2011) descascou ressabiadamemte na "verborreia frenética" do atual Presidente da República sem sequer ter a frontalidade de o nomear. Cavaco — falando retroativamente de si — entende “a palavra presidencial" como "devendo ser escassa", tanto quanto a de um "Presidente Júpiter, um Deus de palavra rara no seu Olimpo” — mas, no mesmo dia e à mesma hora, descreve como "pios" a intervenção política do PCP e do BE, que, segundo ele, defendem a saída do euro, ou define como não menos que "revolução socialista" o programa "daqueles que [estão] no Governo", pelo que se deduz que se tratem dos próprios socialistas. Reformistas tão moderados como Centeno são, afinal, revolucionários, e dos mais radicais!
Valia a pena perguntarmo-nos por que se junta Cavaco àqueles que, à direita, parecem queixar-se de que PCP e BE tenham deixado de "piar". Um dia, na Autoeuropa, na PT ou na Função Pública, os comunistas são "irresponsáveis" e "extremistas"; no outro, perderam o pio. Mas quero focar-me nestes "pios" de Cavaco feitos de manipulação deliberada dos termos com que se descreve a realidade, e sobretudo com que se descreve o adversário, as suas intenções e a sua intervenção.
Já o escrevi aqui: ninguém desde a queda de Salazar encarnou melhor do que Cavaco o que é, bem lá no fundo, a direita portuguesa, por mais Marcelos, Paulos Portas, Durões e Passos que apareçam. Cavaco voltou a enunciar o essencial da sua visão do mundo: a de que a realidade é de direita (conservadora nos valores; hierárquica e desigualitária na ordem social e política; na economia, liberal nas intenções e corporativista na prática), a esquerda é que é ideológica, e a ideologia (isto é, o que Cavaco e a direita acham que ela é) é feita de “delírio e ignorância”, como voltou ele a dizer há dias. Esta é, aliás, uma das suas obsessões recorrentes sobre a natureza da mudança social em geral, e a da Revolução Portuguesa de 1974-76 em particular: para Cavaco, aquele não foi mais do que um período de "loucura política" (Autobiografia, vol. I, 2002) e "loucura ideológica", como dizia ele em 1987 sobre os movimentos sociais no Sul. É por confundir a sua própria ideologia com a realidade que a direita acha, mais do que "loucura", inútil tentar mudá-la porque ela "acaba sempre por derrotar a ideologia".
Claro que, para Cavaco, ideológico não foi o devastador "ajuste" austeritário que Passos e a troika fizeram, apesar de confrontado com uma realidade que confirmava o seu fracasso (aumento exponencial da dívida). Pelo contrário, tratou-se da necessária correção de "desequilíbrios traduzidos na vulgar expressão 'Portugal vive acima das suas possibilidades'"; se o não fizesse, "Portugal deixaria de ser um Estado que honra os seus compromissos". Com o seu próprio povo? Não: com "os Estados, as organizações internacionais" e os "investidores" (Prefácio, ...). Ideologia, isto? Não: simplesmente moral. Opor-se a privatizações ou cortes arbitrários nos salários, da mesma forma que denunciar o racismo ou o sexismo, isso é que é ideológico!»
Manuel Loff
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1 comments:
Ver
https://porquenaovotoemcavaco.blogspot.pt/2017/09/afinal-o-macron-nao-perdeu-o-pio.html
https://porquenaovotoemcavaco.blogspot.pt/2017/08/a-azia-nao-perdeu-o-pio.html
lopesdareosa
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