«Já sabe do inquérito que aqui lhe estendo: de que clientela é vocelência? Porque a sociedade à beira mar plantada está dividida entre as clientelas, portanto malévolas e interesseiras, e os garbosos cavaleiros da virtude pátria. Todas as vozes autorizadas se conjugam nesta certeza, a de que as clientelas tomaram conta do fraco do primeiro-ministro e procedem a esventrar o orçamento, comendo-lhe nacos sangrentos, tudo num apetite que compromete o futuro de Portugal. É portanto de grande responsabilidade a escolha que vai fazer. Pondere antes de assinar, os credores estão de olho em si.
A sua primeira opção é a pior, fica já a saber. Se faz parte dos 210 mil que beneficiam da alteração do mínimo de existência, dos 1,3 milhões salários e pensões que pagarão menos IRS dado que a promessa dos novos escalões se cumpriu, dos 2,5 milhões de reformados que vão ser aumentados ou dos 600 mil funcionários públicos que têm as carreiras descongeladas, se é um dos 600 mil trabalhadores do privado cujo salário mínimo vai voltar a subir, se faz parte dos muitos milhões que usam o serviço de saúde e conseguirão médico de família e esperam a recuperação da qualidade dos tratamentos, se tem crianças que vão ter manuais escolares gratuitos e menos alunos por turma ou se recebe o abono de família, só tenho uma notícia tenebrosa para si: malandra, está a devorar o Orçamento, essa clientela é a vergonha do país.
A sua segunda opção é a melhor, vá por mim, assinale que é tudo boa gente. Se tem interesse na privatização dos aeroportos, na venda da TAP ou na concessão dos transportes de Lisboa e Porto, espera pela véspera ou até pelo dia seguinte a eleições, que um governo de gestão lhe vai fazer o despachozinho. Se tem uns dinheirinhos de lado, vai haver um apagão e 10 mil milhões voarão para offshores, se o seu banqueiro for dos tais é coisa garantida. Se tem amigos na mafia russa, um Visto Gold resolve o assunto, seja bem-vindo. Se comprou uns submarinos, já sabe que o Pai Natal está próximo. Se espera dividendos nas energéticas, a renda é confortável e, credo, ninguém lhe mexe. Se teve prejuízos no seu banco, talvez consiga que o Estado lhos pague ao longo dos próximos 19 anos. Isso não é clientela, não senhora, é tudo business.
Assim estamos, então. Invariavelmente, nesta luta sem tréguas pelas palavras, os que dizem “clientela” atribuem-se representação do interesse geral e fazem vénia a quem terçar pelos barões, pelo sr. Neeleman, pelo dono da EDP, por algum aventureiro que quer Visto, são os “investidores”.
Noves fora, um conhecido cientista político norte-americano, que ia pelo difícil nome de Schattschneider, escreveu uma vez o mais óbvio: “Há milhões de conflitos potenciais em cada sociedade moderna, mas só alguns se tornam significativos. A definição das alternativas é o supremo instrumento do poder. Quem determina sobre que é que é a política dirige o país”. Ou seja, quem determina as palavras com que se fala ou os temas que se discutem é o vencedor. É mesmo disso que se trata: se o discurso anti-“clientelar” conseguir marcar um cordão sanitário em volta da vida da maioria da população, patologizando as suas aspirações e fazendo com que os da fila da sopa dos pobres lamentem a desgraça do milionário que tem de pagar o “imposto Mortágua”, então a direita prevalecerá. Mas engana-se quem à direita pense que a batalha está ganha e espero que tome nota: a radicalização do PSD e CDS e de outros como partidos orgânicos dos interesses burgueses impõe-lhes um custo, se à esquerda se perceber que esta discussão exige a centralidade de uma estratégia de bipolarização. Vamos a isso, é tempo de atacar as clientelas sem dó nem piedade. Se se pergunta como serão estes dois anos para construírem uma esquerda que vença, eis a resposta. Bipolarização. Vida mais difícil para o centro? Sim.»
.
0 comments:
Enviar um comentário