Quando tanto se fala dos primeiros cem dias do «reinado» de Trump, lembrei-me deste texto de Nuno Brederode Santos, escrito depois da noite em que Obama foi eleito.
«Como tanta gente, vivi entre amigos a noite americana. Uma poltrona, um copo à mão e um cinzeiro que começa imaculado, mas sobre o qual chovem beatas ao ritmo do apuramento dos votos. Em volta, vozes familiares, risos conhecidos, exaltações antigas - ou seja, idiossincrasias da minha colecção pessoal. Não quero chocar ninguém, mas nem James Bond, nem Indiana Jones, nem Rambo: as grandes emoções são sedentárias.
Vivida a festa, porém, logo na manhã seguinte vemos alguns, dos que era lícito pensar que a celebravam, falando agoiros em nome da prudência, com caras soturnas e olhar sombrio. É deprimente a militância no cinzento. É a recusa do encanto em nome de qualquer desencanto que aí venha. É a recusa dos afectos porque amanhã estaremos todos mortos. Nós sabemos que os valores iluminam o sentido da História e os interesses fazem a gestão do cruzeiro da vida. Mas os valores libertam muitos condenados e assustam muitos carcereiros. Devemos-lhes a literatura, a música, a pintura. Já os interesses, esses, são contas em papel pardo, sem as quais o merceeiro não nos fia. Depende deles o nosso dia. Nós sabemos. E creio que Obama, o "menino magricela com um nome esquisito", saberá que quase sempre os valores desaguam nos interesses e dissolvem-se neles. Mas, que raio!, isto avança por marés. Sigamos esta por agora. Se e quando esmorecer e sobrevier o desencanto, pois também esse é finito e precário - como nós e como o encanto que ele matou. Mas então sobrevirá outra maré alta de valores, trazida por outro alguém que ousou e que subirá um pouco mais no areal dos interesses. Talvez relembrar os interesses seja pôr um frio juízo nos calores da noite americana (ou nesse novo imaginário que mobilizou, de mãos dadas, a maioria de tantas velhas minorias). Mas a ilusão que galvanizou essa noite, por muito que desfaleça, terá deixado na praia alguma verdade irreversível. E a verdade, como as baleias, não tem guelras: mais tarde ou mais cedo, tem de vir à superfície respirar. Depois de Martin Luther King, poucos acreditavam na viabilidade de um caminho entre o Pai Tomás e Malcolm X. Afinal havia um e Obama fez dele uma alameda: subentender as raças, em vez de falar delas. Pressupô-las como experiência e memória, para logo as superar na proposta de uma acção conjunta. Ele sabe e nós sabemos que não há mandato que chegue para endireitar os dois de Bush. E que, mesmo sem Bush, já havia na América muito para endireitar. Mas a aventura ainda mal começou. Deixem tentá-la, porque algo, senão de bom, pelo menos de melhor, irá ficar.
Um ambiente de rixa de taberna em fim de noite, em tempo de salários em atraso. Um chefe de Governo (e chefe de tudo o mais, de resto), sentado entre a potestade e o escárnio, brada "fascistas!", por cinco ou seis vezes, dirigindo-se aos adversários políticos. Acácios em pose de Estado embrulham, com pompa e latim, inconstitucionalidades, ilegalidades e agressões várias às regras mais rudimentares da coexistência democrática. Há deputados façanhudos que pensam o impensável e dizem o indizível. Uma maioria prepotente que impede o exercício de um mandato popular e que aproveita pretextos para suspender o funcionamento da própria assembleia em que impera. Tudo isto para calar um deputado que à falta de senso comum acrescenta a arreigada convicção de que a política se faz para os media, pelo que nada melhor do que jogar com o circense e o bizarro (e ao qual acabaram por proporcionar um dia fasto). E tudo isto é assegurado por seguranças privados, pelo receio de tais mandantes de que a PSP obedeça à normal cadeia de comando que culmina no "colonizador". Grandes momentos de televisão. Grandes momentos de democracia. Durante tudo isto - e até ao recuo em toda a linha do PSD/M - o PSD nacional não tugiu. Escondeu-se no silêncio e no embaraço. Não sei como vai ser: Jardim não consegue impor-se no continente, mas ninguém, no PSD nacional, consegue refrear os seus abusos na Madeira.
No passado domingo, escrevi aqui "O parlamento no seu labirinto", brincando com o título de Gabriel Garcia Márquez. Já de madrugada e correndo a blogosfera, encontrei, no "Bicho Carpinteiro", uma prosa de José Medeiros Ferreira sobre o mesmo tema e sob o título "Cavaco Silva no seu labirinto". Logo calculei que haveria quem visse no meu texto a réplica ou a indirecta que ele não era (o que, de facto, viria a suceder). Por isso, logo no domingo, entendi dever explicar-me a JMF, que recebeu o caso com a bonomia que as velhas amizades consentem. Faço aqui este registo, para esclarecimento de todos os que hajam lido ambos os textos.»
Diário de Notícias, 09.11.2008
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