Mesmo a propósito quando não há dia em que não me revolte contra autocensuras, proibicionismos e obrigatoriedades. Para vivermos infelizes e morrermos liofilizados.
«Há hoje, no espaço público, sinais de um regresso a concepções e normas de convivência social que julgávamos estarem ultrapassadas. Quer pelo peso de alguns séculos de civilização ocidental, quer como consequência daquilo que veio a ser uma das suas marcas identitárias, estas normas acabaram mesmo por representar características de regimes contra os quais hoje o Ocidente se debate. Falo da censura e das limitações à liberdade de expressão.
Ao contrário de uma imposição de Estado ou de regime sobre um conjunto vasto de súbditos, como forma de limitar as liberdades individuais e de controlar as opiniões da população, estes fenómenos estão hoje, muitas vezes, a resultar de processos inversos: partindo da autocensura e da “censura por pares” imposta na sociedade e, lentamente, a ser exigida aos Estados e aos seus legisladores.
A origem é apenas uma, apesar dos múltiplos rostos que pode assumir: resulta da imposição de um pensamento e um discurso politicamente correcto. A sobrevalorização da forma face ao conteúdo quase nos obriga hoje — ou em muitos casos obriga mesmo — a avaliar e ponderar cuidadosamente a linguagem, o discurso, o uso de determinadas palavras em detrimento de outras, a escolha de imagens, metáforas, géneros, preferências, ou até manifestações de opinião.
Quase tudo hoje está sujeito a uma leitura de intenções, avaliadas pelos detentores dessa verdade socialmente construída. Intenções avaliadas a partir da forma do discurso, e que, avisadas ou descabidas, contra reais ameaças ou atacando inadvertidos cidadãos, tornam a comunicação, a acção política, o conceito de liberdade de opinião, limitado a um conjunto de parâmetros que vulgarmente designamos por “politicamente correcto”.
Um quase tudo que se manifesta em: pinturas do século XIX que já não “convém” expor num museu dado que, e cito, “objectificam determinados grupos sociais”; editoriais sem qualquer qualidade e público, mas que são vítimas de apelo à revolta e à censura; o recente desaconselhamento, com direito a intervenção do governo francês, da edição dos textos panfletários de Céline; em palavras que são criadas e impostas para que o seu uso respeite a “nova sociedade”, ou o “homem-novo”; livros que são reeditados e revistos, alterando palavras que não são admissíveis aos olhos da civilização contemporânea bem pensante, como no caso do “perigoso” Mark Twain. Estes são apenas poucos exemplos do que temos assistido nos últimos anos. O espaço público é menos livre assim? Certamente. São práticas próprias de democracias? Não. E eventualmente mais próximas de outros regimes contra os quais estas democracias combateram há bem menos de um século.
Uma elite iluminada, responsável pela definição dos critérios sobre o bem-pensar, o bem-fazer e o bem-dizer, não só se assume como legitimada pela história, pelo progresso, pela sua visão moralizadora e descontaminada da sociedade, como tem, paulatinamente, transformado em agenda legislativa muitas destas matérias. Impondo comportamentos ou penalizando transgressões. Isto resulta da democracia que tanto defendem, afirmando que através dela se deve procurar o progresso das sociedades. Ou melhor, em muitos casos, “impondo” a sua visão de progresso.
Mas não era a liberdade de expressão precisamente um dos pilares fundamentais da democracia? Posso em muitos destes casos até concordar com a defesa que se faz de algumas destas matérias. Mas não posso aceitar imposições. Posso até compreender algumas destas agendas políticas e sociais. Mas não posso aceitar a ditadura do politicamente correcto. Posso até querer activamente participar nestes processos de consciencialização. Contudo, não entendo uma sociedade democrática sujeita a censura e a impedir a liberdade de expressão. Impor uma sociedade descontaminada e esterilizada pode ser a ambição de regimes totalitários, nunca de democracias.»
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