28.1.19

O Bairro da Jamaica não é aqui



«“Pense no Haiti, reze pelo Haiti/ O Haiti é aqui/
O Haiti não é aqui”
‘Haiti’, Caetano Veloso

“É correto dizer a um homem que ate as botas
sozinho, mas exigir a um homem sem botas que
as ate sozinho é uma brincadeira cruel”
Tradução livre de uma frase de Martin Luther King

Contou-me uma amiga escritora que, há uns tempos, de visita a uma dessas escolas dos subúrbios de Lisboa de turmas compostas, na sua maioria, por alunos negros, alguns deles portugueses, outros estrangeiros, pediram-lhes que levantassem a mão aqueles que se sentiam portugueses. Dois ou três, talvez por precipitação ou boa vontade, levantaram a mão. Os outros, quase todos, afirmaram em silêncio que nem este país, para onde os pais vieram trabalhar, em que muitos deles já nasceram, é deles nem eles são deste país. Os países deles chamam-se Cova da Moura, Vale da Amoreira, Bairro da Bela Vista, Quinta da Fonte da Prata, Quinta da Princesa ou, como todos aprendemos nos últimos dias, Bairro da Jamaica. Os mais ingénuos talvez julguem que estes bairros, por se situarem geograficamente em território português, fazem parte de Portugal, mas essa é uma ilusão que não resiste ao mais pequeno escrutínio. Basta olhar para as imagens do Bairro da Jamaica. Olhem para aquelas torres de tijolos despidos, para aquelas ruas lamacentas no inverno e empoeiradas no verão, para os buracos onde deveriam estar janelas e portas, para os tanques de pedra, os estendais improvisados, o lixo que se acumula à entrada e à volta dos prédios, e digam, com toda a honestidade, se isto se parece com um país da Europa Ocidental no século XXI ou se não se assemelha mais às imagens de devastação que nos chegam de países em guerra ou às ruínas de um pesadelo distópico?

E, no entanto, é ali que vivem cidadãos portugueses ou cidadãos estrangeiros que Portugal acolheu, é ali que vivem contribuintes ao lado de desocupados, criminosos ao lado de mulheres que, ainda de madrugada, passam hora e meia nos transportes para trabalhar nas limpezas a troco do salário mínimo, é ali que vivem miúdos que desistiram da escola ao lado de jovens universitários que trabalham em part-time no McDonald’s, que têm de aquecer água numa panela para tomarem banho e que aprendem desde muito cedo a omitir de onde vêm porque sabem que Bairro da Jamaica num currículo é pior do que cadastro. É ali, naquelas condições degradantes, em que só com um esforço sobre-humano, uma tenacidade feroz, se consegue pôr a cabeça de fora, lutando contra todas as formas de preconceito, contra os mecanismos de perpetuação da pobreza, lutando muitas vezes contra os hábitos e a cultura de família e amigos, é ali, dizia, que vivem seres humanos que depois censuramos por não serem suficientemente agradecidos, por não amarem este país que lhes deu tudo o que têm: uma miséria que nos devia envergonhar.

A sensação que eles têm não é diferente da de muitos portugueses que vivem no interior. Esses portugueses velhos, doentes, abandonados pelo Estado à sua sorte, que morrem nos incêndios e cuja vida depende em alguns casos das atividades lúdicas do médico que serve no helicóptero do INEM, também se sentem revoltados, queixam-se de ser cidadãos de segunda. Porém, com esses conseguimos ser empáticos. Não lhes dizemos: “Venham para as cidades.” Mesmo quando há sinais de incúria, percebemos que pessoas de poucos rendimentos não os queiram desperdiçar em exercícios para os quais também lhes faltam as forças. É que eles nos lembram os nossos avós. Nos lugares onde eles morrem íamos nós passar as férias de verão. Mas ninguém passa férias no Bairro da Jamaica. É aqui bem perto das nossas cidades e até podemos cruzar-nos com pessoas que vivem lá. Pode ser que algumas delas limpem os escritórios onde trabalhamos ou tomem conta dos nossos filhos. Acontece que os nossos avós não vieram de lá nem nunca viveram lá. Além disso, os nossos avós não eram pretos. Nós não somos pretos. Nós não somos pobres. Já fomos, mas graças ao nosso empenho, às nossas virtudes, deixámos de ser. Somos a prova viva que só é pobre quem quer. Só é preto quem quer. Só vive no Bairro da Jamaica quem quer.



Por isso, não nos indignamos com a miséria do Bairro da Jamaica, mas indignamo-nos com a violência dos habitantes do Bairro da Jamaica. Indignarmo-nos com a miséria do Bairro da Jamaica não significa desculpar criminosos ou bater palmas a quem atira pedras à polícia. Não significa tolerar um discurso de pessoas com responsabilidades políticas que, repetindo velhas cartilhas com novas roupagens e a pretexto da defesa dos desfavorecidos, fomenta o ódio, ergue barricadas e reforça a exclusão contra a qual supostamente se manifesta e faz dos homens e mulheres, brancos e negros, das forças de segurança a “besta negra”, a raiz de todos os males, o alvo a abater. A indignação com a miséria de todos os bairros da Jamaica que subsistem em Portugal ao fim de quatro décadas de democracia passa por entender que um Estado que, por desleixo ou incapacidade, não resolve aquele problema e reduz a sua presença a intervenções policiais cria as condições para que o diálogo entre estas duas realidades, entre os dois países, seja feito de pedradas e bastonadas, de acusações de racismo e de abusos das autoridades, “bosta da bófia” de um lado, “pretos de merda” de outro.

A falta de indignação deriva da falta de empatia: simplesmente, não nos conseguimos imaginar naquele lugar. Aquela gente não somos nós. Sentimos a agressão a um agente como uma agressão à comunidade (e é), mas justificamos a violência policial optando por não ver que é uma agressão da comunidade (que também é). Conseguimos pôr-nos na pele de um polícia mal pago e que é recebido à pedrada, compreendemos a pressão a que está sujeito e toleramos os excessos que, por vezes, dela resultam. Mas não somos capazes de imaginar que aquele homem e aquela mulher, aqueles pais, que vimos ser agredidos de uma forma que a legítima defesa não pode justificar, pudessem ser os nossos. Porque eles são pobres e nós não. Porque eles são pretos e nós não. Porque os filhos deles atiram pedras à polícia e os nossos não (mas eu não quero viver num país em que não ser espancado pela polícia é um privilégio reservado aos cidadãos honestos e cumpridores). Porque vivem num país paredes-meias com o nosso, mas aonde nunca fomos, que conhecemos mal e, orgulhosos da nossa ignorância e escudados nos preconceitos, iremos continuar a ignorar enquanto nos entretemos a discutir pormenores de bosta.»

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