«Em 1911, um pacato farmacêutico londrino, Mr. Godfrey, foi morto num assalto por três ladrões chamados Green, Berry e Hill. Ele morava no bairro Greenberry Hill.
Em 1958, cansado das discussões de arma em punho entre os pais, o filho do casal sobe ao telhado do prédio e atira-se para a morte. Quando o corpo em queda passa o andar onde mora, um tiro, disparado pela mãe na direção do pai, atinge-o. O suicídio torna-se homicídio. Enquanto o filho é transportado para o cemitério, a mãe e o pai, considerado cúmplice, são levados para a prisão.
Quem viu, sabe que estas histórias são contadas na abertura do filme Magnólia, de Paul Thomas Anderson, de 1999. No final, o narrador diz "eu quero acreditar que tudo isto é obra do acaso".
No Brasil, a quinta maior nação do mundo, as últimas horas também foram marcadas por coincidências. E o tamanho do país vem ao caso porque, caro leitor, quais são as probabilidades de numa extensão de terra de mais de 8500 quilómetros quadrados, o autor dos disparos que mataram Marielle Franco e o seu motorista Anderson Gomes morar a poucos metros do presidente da República no condomínio Vivendas da Barra, na Barra da Tijuca, zona sul do Rio de Janeiro?
Sendo vizinhos e tendo descendentes mais ou menos da mesma idade já não será tão surpreendente que, como confirmou o delegado do caso, Giniton Lages, um filho do segundo tenha namorado uma filha do primeiro.
Já antes, as investigações tinham chegado à conclusão de que a execução, pelo modus operandi, era obra de milícias, os grupos paramilitares compostos por militares reformados que atuam de forma mafiosa no vácuo entre a polícia e o tráfico. Cruzando informações, os delegados identificaram mesmo as impressões digitais da maior e mais perigosa de todas as milícias, o Escritório do Crime. Sucede que, por coincidência, o filho mais velho do presidente homenageou Adriano Nóbrega, o líder do "escritório", em sessão da Assembleia Legislativa do Rio de há uns anos. No seu gabinete, aliás, empregava como funcionários a mãe e a mulher de Nóbrega. E o seu assessor principal, envolvido num caso de corrupção que atormenta o governo, quando precisou de escapar do escrutínio das autoridades recorreu ao bairro onde o Escritório do Crime opera para se refugiar.
Além do vizinho do presidente, o outro suspeito de estar no carro de onde saíram os disparos que mataram Marielle e Anderson exibia, orgulhoso, uma fotografia nas redes sociais dele com o hoje chefe de Estado, então ainda na pele de candidato. Embora sujeita a perícia, pela data de publicação a foto será de três dias antes da primeira volta das últimas eleições, menos de sete meses após o crime. Argumenta o presidente que, sobretudo no papel de candidato, deixou-se fotografar com milhares de polícias. Entre eles, portanto, o acusado de matar Marielle.
Na véspera da detenção dos dois suspeitos, o presidente envolvera-se noutra controvérsia, em princípio muito distante do crime. Servindo-se de fake news, acusara uma repórter do jornal O Estado de S. Paulo de, numa conversa gravada, ter dito que visava arruinar o governo ao investigar o caso daquele tal assessor principal do filho mais velho do presidente envolvido num caso de corrupção. No tweet em que disseminava a informação falsa, o chefe de Estado ia mais longe e revelava que Constança Rezende, o nome da jornalista, é filha de Chico Otávio, repórter de O Globo. Otávio é o repórter que vem ocupando-se do assassínio de Marielle no seu jornal e que, no dia das detenções, horas depois da acusação presidencial via Twitter, trazia informação detalhada sobre a investigação e o passado criminoso do autor dos disparos - e vizinho do presidente - e do seu cúmplice - que se fotografou com o ainda candidato a presidente.
Como diz o narrador em Magnólia, o povo brasileiro, dos apoiantes aos opositores do presidente, quer acreditar que tudo isto é obra do acaso. Só uma revelação, talvez em forma de chuva de sapos no final da história, esclarecerá se é ou não.»
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