«Nem percebo a razão da balbúrdia. Não parecem sobrar dúvidas à alma mais inocente de que a gestão institucional do sistema bancário, a consolidação de que tanto se fala, tem sido de cabo a rabo uma farsa em que se enterra dinheiro a bel-prazer e em que os governantes fizeram fila para completar a missão uns dos outros.
Ao longo do tempo já tivemos de tudo. Tivemos uma grande privatização em que um empresário pagou o banco com um cheque descontado sobre o próprio banco, para que se havia de incomodar em pagar o negócio. Tivemos uma venda de uma companhia de seguros em que os compradores a pagaram com a alienação imediata de alguns ativos. Tivemos a privatização dos Correios com um banco atrelado em que os dividendos esvaíram as reservas para recompensar generosamente os compradores. Temos a privatização de uma seguradora em que a transferência de alguma propriedade imobiliária para um fundo especulativo cobriu grande parte da despesa inicial. Tudo provas de que a vã filosofia consegue mesmo imaginar mais coisas do as que há entre a terra e o céu.
Fosse só isso e poderíamos agradecer alguma moderação ao sistema financeiro, seria simples ‘business as usual’. Só que os juros andam baixos, os tempos difíceis, os movimentos arriscados e, por isso, foi preciso reforçar a garantia de rendas. A resolução do BES foi o primeiro exemplo (4900 milhões de euros). Foi tão competente que deu logo lugar a uma segunda resolução (2000 milhões de euros). E depois a uma venda de 75% do banco a um fundo norte-americano de aplicações financeiras especializado no imobiliário, com a contrapartida de o Estado o fazer financiar depois até 3890 milhões de euros pelo Fundo de Resolução. A venda do Banif, canibalizado por erros e sobretudo pela agressão contabilística que lhe impôs uma venda precipitada e com uma recapitalização faraónica em prol do Santander (3000 milhões), foi o segundo exemplo. Depois, como tudo isto custa rios de dinheiro aos contribuintes, via CGD, e incomoda os outros bancos, que pagam uma parte de misteriosas operações de multiplicação de confortáveis prejuízos, veio o conforto de passar os pagamentos ao Fundo de Resolução de três para trinta anos e a juro reduzido. Para que ainda não houvesse dúvidas, o Estado comprometeu-se a pagar aos bancos parte dos impostos que estes podem vir a poupar no futuro graças ao mecanismo de abatimento de prejuízos atuais em lucros hipotéticos, e a deixar registar toda a conta imaginária como ativo realmente existente.
Tudo normal, portanto. Consolidou-se o sistema bancário nacional entregando o maior banco privado a aventureiros que o vão vender na primeira esquina. Espalharam-se garantias públicas pelos bancos em valores de dezenas de milhares de milhões. Venderam-se outros bancos a um zoológico de fundos, bancos, aplicações, empresas públicas estrangeiras e príncipes variados. E, cereja em cima do bolo, Portugal faz orgulhosamente parte de uma União Bancária que estabelece que, quando houver alguma abalo neste edifício maravilhoso, os depositantes serão pela primeira vez forçados a arcar com uma parte das perdas, amputando as suas poupanças. A consolidação é um grande sucesso, como se vê.
Não há tantos anos, na campanha eleitoral de 2015, António Costa indignava-se com esta engenharia e alertava os contribuintes para os riscos que corremos. Agora, tudo consolidado como manda a etiqueta, as vozes do PS indignam-se por alguém achar que os riscos se tornaram certezas caras. Como diria o senhor Pangloss, estamos bem e não poderíamos estar melhor, ai de quem se atreva a criticar esta consolidação e a sua fábula.»
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