«Somos um País com idiossincrasias engraçadas, e esta é uma delas.
Todos querem ser licenciados em alguma coisa, para acederem ao vocativo social do doutor, engenheiro ou afim, que depois usam e convidam os outros a usar como se fizesse parte do seu nome próprio ou coisa que o valha. Ser licenciado é tão importante, que a classe política, especialmente ela, não hesita em tomar atalhos para aceder ao almejado título. Equivalências, cursos sem rigor de avaliação, expedientes vários. Vale tudo, porque vale muito ser licenciado.
Mas também somos o País que despreza os doutores em sentido próprio – isto é, quem tem um doutoramento. Isto não tem uma boa explicação, é da natureza das idiossincrasias, é como é.
Dados publicados por estes dias não enganam. Produzimos Doutores, mas esses Doutores ficam fechados nas Universidades e Politécnicos ou no sistema de investigação da precariedade e do baixo salário. Temos Doutores a produzir licenciados, mestres e mais Doutores e pouco mais.
Estou bastante à vontade para ser crítico disto porque, sendo doutorado, sou professor universitário. Mas, fruto de uma vida de opções errantes, também sou quadro da administração pública e já fui gestor de empresas. E tenho três ou quatro coisas para dizer.
Primeiro, o problema não está só nas empresas que se recusam a ver o valor de um doutorado – já lá vamos – o problema começa no Estado. Não são só as empresas. O Estado, para lá do sistema universitário e politécnico de investigação e ensino também emprega uma quantidade muito pequena de doutorados. Ainda menos que as empresas. Faz o que eu digo, não faças o que eu faço?
Se o Estado, que é a maior organização de recursos do País não internaliza o valor que a contratação de doutorados lhe pode trazer na sua política de contratações, podemos esperar que as PME’s o façam? Noutros Países da Europa a Administração Pública emprega, fora do sistema do Ensino Superior e Investigação, como quadros, 10 ou 20% dos Doutorados. Em Portugal, menos de 4%. É poucochinho e alguém devia olhar para isto. A caridade começa em casa e um bom exemplo vale mil proclamações políticas.
Segundo, nas empresas, onde normalmente se coloca o foco, a situação é igualmente confrangedora. Apenas um pouco mais de 4% dos doutorados é absorvido pelas unidades produtivas privadas. Uma economia de baixos salários, empresários apostados na renda confortável da pouca concorrência e no uso de capitais alheios associados à falta de escala nas empresas – temos poucas grandes empresas, e mesmo essas, muitas vezes em sectores de mão de obra intensiva, que convidam a procurar quantidade e não qualidade – são fatores importantes, mas não serão o único.
Terceiro, num País onde um doutorado é visto como uma espécie de cientista maluco, capaz apenas de pensamento abstrato e hermético, com zero sentido prático da vida e pouco dado a visão de negócio o preconceito impera. Talvez isso explique porque é que em muitas empresas, doutorados, nem com 50% de desconto.
Sim, porque há programas de apoio a estas contratações, abertos neste momento, em que são elegíveis os custos salariais com a contratação de doutorados até ao montante de 3.209,67 euros/ mês, e além do salário base, são elegíveis os respetivos encargos sociais obrigatórios, nomeadamente as despesas com a segurança social e o seguro de acidentes de trabalho. O Estado, durante 3 anos, paga. Não é coisa pouca. De pouco serviu. O preconceito tem falado mais alto.
Quarto, os doutorados, por sua vez, se calhar também não estão muito motivados para ir para as empresas. Ir para as empresas, diga-se, é muito menos cómodo que ficar na Academia, onde até podemos não ser muito valorizados, mas ao menos estamos com a nossa tribo, que nos compreende.
Como se quebra esta quadratura que rouba ao País parte do retorno económico que este investimento em qualificação deveria trazer?
Há bons exemplos – desde logo os Laboratórios Colaborativos juntam debaixo do mesmo teto empresas e unidades de investigação – mas não será uma medida única que irá resolver isto. É preciso abrir várias frentes e explorar diferentes abordagens. Em suma, é preciso mudar mentalidades, e isso demora.
Dá-se, de forma inoportuna, o caso de que tempo é o que não temos. A transformação do trabalho está aí e ou estamos na vanguarda, ou estamos condenados. A capacidade de integrar doutorados nas empresas e nas organizações vai fazer a diferença entre a vida e a morte de muitos modelos de funcionamento. Somos demasiado pequenos para desperdiçarmos recursos. Estou tão preocupado com isto que estou no Colabor, onde se juntaram empresas, centros de investigação e organizações da área social, com apoio do Estado, para em conjunto e sem preconceitos pensarmos como nos adaptamos a tudo isto. E já começámos.»
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1 comments:
Que maneira mais curiosa de colocar a questão ! Isto é um pouco como se os cientistas se queixassem da realidade porque ela não corresponde às suas vaticinações, ou não ? Se existe, como acredito que seja o caso, uma inadequação entre a "produção" de doutores pelo pais, incomparavelmente maior hoje do que ha 30 ou 40 anos atras, e a sua valorização no mesmo pais, em termos de emprego publico e privado etc., o problema é capaz de ter a ver com a universidade, ou não ? E se é um facto, como também acredito que seja, que os Portugueses procuram mais a universidade por razões de estatuto social, do que propriamente em razão do que ela é suposta dar (ciência, cultura, competências), a causa do problema também me parece dever ser procurada na universidade.
O que leio no post soa-me a um queixume particulamente patético : "não merecemos os doutorados que temos". Imaginam o Ptolemeu a dizer "que universo tão ordinario, onde as estrelas e o sol nem são capazes andar racionalmente à volta da terra" !
Boas
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