«Esta é a cor de que se tinge a nossa vergonha, colectiva, de Humanidade. Desta Humanidade europeia que reclamamos ser berço de civilização, mas para a qual, pelos vistos, continua a haver uns mais humanos do que outros. Ou mais iguais do que outros, relembrando Orwell.
E é impossível não relembrar Orwell, nos dias que passam. É impossível não pensar na crueza encerrada nas suas visões distópicas, que, afinal, se revelaram, em tanto, previsões acuradas de um futuro, que hoje é o nosso presente.
O futuro em que nos morrem à porta, figurada e literalmente, outros seres humanos, tão humanos quanto nós, tão menos humanos que nós, tão mais humanos que nós.
Humanos no sofrimento de quem tem fome, ou tem sede, ou tem medo, ou, simplesmente, sonha. Sonha nessas paragens onde sonhar é proibido (ou é-o para a maioria, porque os outros sonhos, megalómanos e cruéis, são a realidade dos poucos que lhes destinam os futuros).
Humanos na fragilidade de quem é explorado, traficado, vendido e comprado. No desespero de quem empenha a pouca vida que tem, na procura de outra vida, que só poderia ter sido melhor. A vida que estaria para além de um mar que antigamente era apenas azul. E que tornou a ser clausum.
Humanos sim, demasiado humanos talvez, pois que conservam em si o que a nossa humanidade, dita desenvolvida, parece ter perdido: a convicção, a perseverança e a força, essa tão apregoada resiliência, que nós, no nosso “desenvolvimento” acomodado, vamos deixando afundar no sofá, como no sofá afundamos os nossos corpos e as nossas almas, perante a visão dos que se afundam na morte, num mar que antigamente era apenas azul e que tornou a ser clausum.
Humanos na vontade de sobreviver e fazer sobreviver os filhos que transportam nos braços ou nos ventres. Humanos, demasiado humanos, porque vulneráveis e acossados.
Demasiado humanos porque pobres, descartáveis e rapidamente esquecíveis e esquecidos. Sem nome, sem rostos e sem histórias. Ou com nome, rostos e histórias que se confundem, porque (nos) parecem todos iguais. E porque (nos) incomodam um pouco, mas apenas o pouco em que a tragédia nos ecoa nos ouvidos, porque a seguir vem outra notícia e, se calhar, outra tragédia e nós distraímo-nos. Naturalmente, distraímo-nos…
Ou então, porque nos falam, baralhando-nos, dos contornos “menos claros” de que se revestem a filantropia e a ajuda humanitária. Porque a pobreza pode ser um negócio lucrativo, como já se sabe, há muito, nas múltiplas experiências de cooperação e ajuda internacional. E pode sê-lo para as agências e organismos internacionais, de reputação supostamente inabalável, como pode sê-lo para algumas organizações humanitárias não-governamentais. Uma leitura atenta e isenta da história da intervenção nas crises em África mostra como isto é, também, uma verdade.
Mas existe nesta área, como em todas, quem seja honesto e quem não o seja. Quem seja bem-intencionado e quem não o seja. Quem se alimente de sangue e quem tente estancá-lo. E, por isso, o discurso em torno do aproveitamento das situações, ou da suposta e iníqua conivência entre ONGs e traficantes, não pode ser o discurso apaziguador das nossas consciências cidadãs e, muito menos, das consciências de quem decide e de quem legisla.
E não pode sê-lo, não apenas pela injustiça da acusação de generalização das más práticas, por parte de quem presta ajuda, mas também, e sobretudo, porque, como se sabe, as cordas tendem a quebrar pelo lado mais fraco. E o lado mais fraco é aquele que foge, tem medo, é acossado ou, simplesmente, sonha.
O lado mais fraco é aquele que é humano, talvez demasiado humano, insuportavelmente humano. Humano como o azul-sangue de um Mediterrâneo que tornou a ser clausum.»
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