«Um estudante terá um dia perguntado à antropóloga Margaret Mead qual era o primeiro sinal de civilização. A resposta veio pronta: uma ossada com um fémur cicatrizado, encontrada numa estação arqueológica com 15 mil anos. Não foi nem um artefacto de caça, nem um pote de barro, nem uma pedra de moer. Para Meade, o que nos distinguiu foi termos começado a cuidar uns dos outros. Em sociedades recoletoras, alguém com uma perna partida seria inútil e incapaz de cuidar de si. A antropóloga acrescentou que, onde reina a lei da selva e só os mais aptos resistem, ninguém sobreviveria com esta condição. Se chegou até aos nossos dias um fémur cicatrizado é porque houve quem cuidasse de um doente, não o deixando ficar para trás. A evidência de compaixão é o primeiro sinal de civilização.
De alguma forma, a história das civilizações pode ser contada através da forma como fomos lidando com os riscos. Aqueles que sempre estiveram connosco, mas, também, os novos riscos, muitos deles criados pela modernização.
Poucas coisas mudaram tanto as nossas sociedades como a socialização dos riscos e o modo como fomos deixando de ser responsáveis pela nossa própria sorte. Mudou a sociedade e, acima de tudo, transformou a forma como nos entendemos na nossa individualidade. É esse, aliás, um princípio basilar do humanismo: somos na medida em que nos projetamos no outro e cuidamos dele.
Há, por isso, um longo processo que se iniciou no cuidador informal, teve um passo de gigante na passagem do século XIX para o século XX com a cria¬ção do seguro social público para enfrentar os riscos de velhice, doença e invalidez associados à industrialização, sob o impulso decisivo de Bismarck, na Alemanha, e que culminou na proteção social universal, no pós-guerra, com a institucionalização dos sistemas beveridgeanos.
Perante um novo risco como a covid-19, de contornos incertos e em parte manufaturado, vale a pena regressar à História. Tem sido muitas vezes dito que vivemos um tempo de guerra, com desafios económicos com poucos paralelos e que há que enfrentar o inimigo, para, depois, em tempo de paz, se tratar do resto. É um equívoco. Mesmo num período dramático como a II Guerra Mundial, não se esperou pela paz para planear o futuro. O relatório apresentado à Câmara dos Comuns por William Beveridge mudou de forma radical a gestão dos riscos nas sociedades democráticas do pós-guerra, mas é de 1942.
Agora é, certamente, o momento de responder à pandemia e aos seus efeitos seletivos. Mas é ainda mais importante planear já como é que vamos recompor a economia daqui a uns tempos. Não será certamente com as respostas do passado. É um daqueles momentos em que temos, de novo, de repensar a gestão dos riscos. Os de saúde pública, mas, também, os sociais, económicos e políticos.»
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