10.4.20

107 degraus



«Foi naquela manhã no ginásio, à saída da aula vazia, nas despedidas do “até breve”, “não vai demorar”, bruscamente a veemência do silêncio brutal do balneário vazio, a água quente de mais, enquanto vou percebendo como uma parte da vida normal tinha acabado, nunca mais voltaria assim. Resisto, vou ao tribunal da parte da tarde, subo a escadaria íngreme que liga as ruas da Baixa ao Castelo de São Jorge, não há gente, outra vez aquele silêncio. A escadaria é bonita, tem 107 degraus contados que sempre me alegraram no encanto de chegar ao alto e contemplar a cidade.

A paisagem das ausências agudiza-se no regresso a casa, que já nem é casa, parece outra coisa. A síndrome da paragem a alta velocidade, as batidas aceleradas do coração, um processo físico complexo.

Primeira parte, a necessidade de criar uma imitação do mundo que tínhamos, de fingir fazer, de imaginar o que já não somos, num despenhar da realidade para um passado longínquo e inacessível, como quem se afasta de terra num barco imparável e sem bússola. Teimamos na imitação de vida, o amor aos netos emoldurado ou desfocado no retângulo do telemóvel, os trabalhos no computador, a âncora da luz amarelada que entra pelas janelas, o acenar à mãe cá de baixo da rua, ao fim da tarde.

Preciso de combater esta expansão convulsiva do recuo, do isolamento irracional, evitar o efeito de espelho eletrocutado, citando Herberto Helder na “Carta ao Silêncio”. Manter os mesmos objetivos diários, os mesmos horários, não funciona, parece que me fui embora de mim própria. Não é altura para explicações que não tenho.

Segunda parte, o bicho malicioso suga-nos, emparedados entre os traços da estatística negra dos mortos e infetados, galvanizados pelo heroísmo médico e pessoal hospitalar indomável, diluímo-nos em esquemas ingénuos. O mundo girava obcecado por dinheiro, por ícones vazios, sem valores espirituais, alimentado de consumismos irracionais e hedonistas, viagens compulsivas, cadeias globais de abastecimentos, euforias mirabolantes, tudo desfeito por este silêncio que é o que não conhecemos. Mal habituados que estávamos a não saber.

Lutar contra o vírus malicioso não é um objetivo de combate egoísta e cobarde, tem que incluir a luta contra a miséria, a desigualdade, a aniquilação do ser humano. Provavelmente vamos aprender tudo de novo, num mundo virado do avesso. Só que precisamos de ação, nunca de asfixia.

Parte três. Adapto então os objetivos à ação, agora sem baboseiras, o processo tem dor, deixo-me flutuar. Descubro a escadaria do meu prédio para o exercício diário, conto os degraus e são 107, 107 outra vez, lá no cimo há o clarão da claraboia. Desço e subo infinitamente, o coração a bater cada vez mais, a suar, no fim ponho um álbum de jazz com a música tumultuosa e caleidoscópica de Shostakovich. Ninguém sabe o desfecho desta história, permanecem no ar os cambiantes das partituras decadentes e poderosas da música, o corpo começa sempre onde acaba, e há um clarão lá em cima da claraboia. 107 degraus, 107, todos os dias, muitas vezes.»

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