23.4.20

Primeiro escolhe-se o caminho, depois a companhia



«Ficaria muito desiludido se tivéssemos de chegar à conclusão que só podemos contar com o PCP e com o Bloco de Esquerdo em momentos de vacas gordas e em que a economia está a crescer." A frase de António Costa traz tanta água no bico que só um pelicano aguentaria. É verdade que Costa disse que não tenciona aplicar a mesma receita do governo de Passos Coelho, porque esta crise é muito diferente. Só que, como se verá quando as taxas de juro da dívida dispararem por causa da crise económica e da inevitável derrapagem do défice, rapidamente se tornará bastante semelhante, apenas com muito maior intensidade.

Mas ao dizer que não concorda com o “preconceito” de que "o PCP e o Bloco de Esquerda carecem do sentido de responsabilidade para compreender que a vida política não é só aumentos de salário e aumentos de direitos", Costa acaba por explicar que o seu olhar não é, por agora, assim tão distante do de Passos. Porque é ele mesmo que contrapõe recuperação económica a aumentos de salários e de direitos, como se uma e outra coisa fossem incompatíveis. Como ele próprio explicou durante anos, é nas crises que devemos evitar a austeridade.

As alianças não se fazem por razões fúteis. Fazem-se em trono de programas. É absurdo António Costa começar a discutir se conta ou não conta com os partidos à sua esquerda antes de esclarecer para que os quer como companhia. Bem sei que é cedo. Mas se é cedo para apontar um caminho talvez seja cedo para começar a exigir fidelidades. Agora estamos a combater o vírus e não lhe tem faltado apoio de quase todos. Depois, que diga para onde quer ir. Quando passarmos a fase da crise sanitária, não são o BE e o PCP que terão de fazer a primeira escolha. É António Costa. Se for a que a Europa lhe aponta neste momento (veremos o que acontece amanhã), dificilmente poderá contar com quem se opôs a Passos Coelho. Nem deveria contar com o seu próprio partido. Se for a oposta – uma política contracíclica, em que o Estado garanta o estímulo à economia que os privados não podem dar, como muito bem aconselhou o insuspeito "Financial Times" – é justíssimo exigir a companhia dos partidos mais à esquerda. Mas se o caminho for esse o confronto com a União Europeia é, pelo menos olhando para os primeiros sinais, inevitável. Estará António Costa disponível para ir para além das bravatas com a Holanda? Se sim, os primeiros aliados em que tem de pensar não são o BE ou o PCP. São a Itália, a Espanha e outros países periféricos. E pensar se Mário Centeno é o homem ideal para essa batalha.

Se a escolha de António Costa for distribuir equitativamente os sacrifícios que existam e promover uma política de investimento público para contrariar a profunda depressão em que as empresas vão entrar, esta crise será uma oportunidade para retirar o país da decadência profunda em que se encontra há duas décadas. Foi em momentos especialmente difíceis que os melhores estados sociais se construíram. Se Costa tiver os aliados europeus para a receita oposta à de 2011 duvido que lhe faltem os aliados internos. Mas se os de cá de dentro servirem apenas como párachoques a ao enésimo programa de austeridade que adia soluções e aprofunda problemas, possibilidade que ele próprio não consegue pôr de lado, imposto de fora, espero que não os tenha à esquerda. Seria um imperdoável erro que esse apoio lhe fosse dado.

A questão não é se António Costa conta com o resto da esquerda para as vacas magras como contou para as vacas gordas. É se a esquerda, no seu conjunto, tem um programa diferente do da direita para tempo de vacas magras. E se contamos com um Costa diferente de Passos quando lá chegarmos. Ou se a direita tem razão e a esquerda só se consegue distinguir quando as vacas estão anafadas. Se o António Costa de agora for o do tempo da troika, com as mesmas propostas e posições, duvido que Catarina Martins e Jerónimo de Sousa lhe faltem. Na realidade, nem chega ser o mesmo. A crise será tal que tem de ser mais audacioso do que então defendia.

Se pretende ter o BE e o PCP para fazer o que criticou em 2011, serei o primeiro a apontar o dedo a estes partidos por um crime contra a democracia. Estariam a entregar a resistência a mais a uma onda irracional de austeridade à extrema-direita, juntando à crise económica e social uma crise política. A democracia precisa destes partidos para cumprirem uma de duas funções: serem aliados do PS na construção de uma alternativa política diferente de 2011; ou serem opositores do PS se este aceitar ser o executor de uma receita que torna este país cada vez mais inviável. Se o PS seguir o caminhos da austeridade, o seu aliado natural é outro e até já lhe dedicou inúmeros elogios: o PSD.

Claro que todas estas afirmações extemporâneas, pedindo companhia para uma caminhada que ainda nem sabe para onde será, podem ser a mera preparação de mais uma estratégia de dramatização. Costa pode querer ir a votos enquanto a popularidade por uma boa gestão da crise sanitária está em alta e antes das escolhas difíceis para lidar com a crise económica. Se for isto, é compreensível para os seus interesses mas indiferente para os interesses do país. Nenhum partido tem de alinhar neste jogo e duvido que o PSD o faça. Se for mais do que isto, que António Costa diga que rumo quer seguir e descobrirá rapidamente quem o pode acompanhar. São as grandes escolhas políticas que determinam os aliados que se merecerem.»

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