«Num país em que há elevado nível de abstenção nos actos eleitorais e baixo nível de participação cívica parecia ser natural que a inclusão da disciplina de Educação para a Cidadania nas nossas escolas fosse motivo de satisfação generalizada. No entanto, surgiu um manifesto que a hostiliza. Nele se exige que seja respeitada a objecção de consciência, tornando a disciplina não obrigatória. Alguns signatários são académicos e até ex-ministros da educação. Um destes, que é uma, sendo também comentadora política apressou-se a explicar-nos o motivo da indignação que está na base do documento: “O facto de ser [disciplina] obrigatória significa que toda a gente tem que pensar da mesma maneira; mas nestas matérias não pode haver unanimismo, como na História ou na Matemática. Se não há unanimismo, ele [o conteúdo lectivo] não pode ser imposto” (M. Ferreira Leite, TVI 24, 2/9/2020). Conclui-se, então, que na opinião da signatária e comentadora, se as disciplinas de História e Matemática não tratassem de matérias “onde há unanimismo” também deviam ser opcionais.
O problema é que contrariamente ao que a ex-ministra da Educação supõe, não se conhece nenhum espaço disciplinar em que reine o unanimismo ou haja rígido corpo de verdades absolutas prontas a serem comunicadas aos alunos. Assim sendo, à luz da argumentação apresentada, nenhuma disciplina devia ser obrigatória. Complicado.
Talvez seja bom parar e reflectir sobre o ponto a que se chegou. Não teremos passado os limites da decência intelectual? Não é já intolerável este abrandamento da chama da elevação mental?
Curioso que os autores do manifesto não sejam conhecidos por se terem manifestado com igual zelo contra a obrigatoriedade da disciplina de Religião e Moral no curriculum da escola pública do ancien régime, muito embora boa parte deles tenha vivido essa realidade. Também não são pessoas em quem se reconheça ter havido até hoje grande preocupação em criticar a influência ideológica e o controlo exercidos pela Igreja Católica sobre a escola ao longo de longuíssimo tempo. Ao que parece, aos seus olhos, esse influir ideológico monopolista era saudável. Não ignoro ser D. Manuel Clemente um dos signatários. Mas justificará a função cardinalícia a ausência de indignação crítica em relação a pretérita dominação ideológica?
A reivindicação da oposição de consciência transporta consigo um perigo para a educação: tende a retirar aos professores a responsabilidade de definir os conteúdos programáticos, transferindo-a para os pais ou para os encarregados de educação. Dessa forma, abre-se a porta aos pais criacionistas que pretendam ver os programas expurgados de darwinismo, ou aos terraplanistas que exijam a leccionação da sua crença. Será que também esses têm direito à objecção de consciência no espaço do ensino da Geografia ou da Biologia?
Os indignados apoiantes do manifesto (subscritores ou outros) são quase sempre sujeitos que defendem o ideal da família patriarcal, da hierarquização, no respeito pelo dogma da desigualdade entre os sexos e explorando a nostalgia de uma pureza mítica. Outras formas de família são consideradas uma negação da condição natural e da normalidade. São, devido a essa alegada conflitualidade com as leis da Natureza, sintomas de doença afectante do corpo da sociedade, sinais de degenerescência, de um mal que deve ser travado. Não nego que muitos dos que assim pensam e sentem sejam movidos por óptimas intenções. O problema é que, como a história ensina, isso não chega. E se as boas intenções se estribam em ilusões, em crenças preconceituosas, em visões míticas, podem facilmente conduzir ao terror.
Para se compreender a zelosa oposição à disciplina em causa é necessário ter presente que o modelo patriarcal é estrategicamente fundamental para a implementação de certo tipo de políticas. Essa visão sempre foi um dos pilares dos regimes totalitários. Daí que talvez não se deva estranhar o horror agora manifestado. O ressurgimento das direitas antidemocráticas é uma evidência do tempo presente. É também uma evidente ameaça à Liberdade, à Igualdade e à Justiça social.
Precisamos mesmo de educação para a cidadania.»
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1 comments:
O manifesto e a argumentação exposta são de uma fragilidade(estou a ser simpática). O ridículo e a anti-democracia de q enfermam são atentatórias de uma democracia plena.
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