José Pacheco Pereira no Público de hoje:
«Nunca imaginei ir tantas vezes ao Barreiro como vou agora. As razões são mais ou menos conhecidas e têm que ver com o facto de dois armazéns do Arquivo Ephemera serem no Barreiro. Não apenas no Barreiro, mas em pleno território da CUF, depois da Quimigal e agora da baía do Tejo, atrás do mausoléu onde está sepultado (ilegalmente, aliás) Alfredo da Silva, e no meio de armazéns e ruínas de fábricas, oficinas e estranhos ofícios que lá se instalaram, como uma igreja evangélica, e vários ateliers de arte. Vou lá e estou bem lá, mas, voltando atrás, nunca imaginei “frequentar” o Barreiro como hoje.
O Barreiro, se fosse uma pessoa, dir-se-ia que era um “carácter”, um portador de identidade, por boas e más razões, que não deixa ninguém indiferente, mesmo que esteja já muito “descaracterizado”, ou seja, estragado. Tem em cima do seu presente um enorme passado e nunca é fácil viver com muita história em cima. A história não está só nas pedras, nas colunas de aço abandonadas, nos silos a desfazerem-se, nos terrenos poluídos, está dentro das pessoas, das famílias, das associações, das ruas e parques. Está no dístico da CUF, “o que o país precisa, a CUF faz”, está numa das melhores vistas do Tejo e de Lisboa, numa longa faixa ribeirinha, está em tradições únicas como a do esperanto, ou do futebol popular e operário.
Aí por volta de 1966, um pequeno grupo de amigos, estudantes de várias faculdades, “associativos” como se dizia, ou seja, opositores do regime, num período que nós ligamos ao Maio de 1968, mas que na realidade começou muito antes, interessava-se pela cultura que era duplamente do contra, contra o Estado Novo e contra a ortodoxia neo-realista. Isto incluía um outro cinema, uma outra literatura, uma outra música, mas, acima de tudo, uma outra vida. Nós pensávamos que era nova, mas na realidade era mais um remake de outros momentos anteriores em que houve mudança, ou pelo menos vontade de mudança. E isso implicava, como também sempre aconteceu, uma certa forma de vagabundagem que acompanhou esse pré-Maio, mais uma certa forma de libertinagem, e mais uma série de outras “agens” que não vêm aqui ao caso.
Não havia muito dinheiro, e a cidade, onde eu era estrangeiro, tinha uma geografia que nós próprios criávamos, desde a Cidade Universitária, ao Campo Grande, ao Saldanha, ao Rossio e à Praça da Figueira, e, por fim, nos sítios onde, junto de gente pouco frequentável, se podia comer por muito poucos escudos, na Rua da Alegria, ou na Rua do Alecrim. Uma geografia de cafés, restaurantes e tascos, que para mim era sempre escassa, porque vinha habituado a uma terra com cafés por todo o lado e onde por 2$50 se podia passar o dia, ler e escrever, e sobrava dinheiro.
Numa dessas noites, eu, a Diana Andringa e o Alexandre de Oliveira resolvemos ir ao Barreiro, já era noite escura. O Alexandre morreu cedo e não sei se a Diana se lembra como eu dessa noite, mas como nada de muito relevante para as nossas personae de hoje está em jogo, posso contá-la como me lembro. A razão por que resolvemos fazer essa viagem nocturna era porque o Barreiro era o Barreiro, o local mítico da classe operária, e como todos os esquerdistas in the making, a terra era simbólica da revolução que desejávamos, mas para a qual não tínhamos mão-de-obra, e duvidávamos sequer de ter a legitimidade de fazer parte dela.
O mundo era simples, no Barreiro havia não só operários, havia a “classe operária” e essa “classe” pertencia ao PCP. Anos mais tarde arrogámo-nos ao direito de a roubar ao PCP, sem nunca se ter grande sucesso. Verdade seja que as coisas já não eram como no mito, a CUF estava a mudar, ensaiava a primeira comissão de empresa, e o PCP no Barreiro já não era o que era, minado por velhos conflitos entre famílias comunistas, a tal ponto que muitos “controleiros” consideravam-no uma zona difícil, não porque houvesse poucos militantes, mas porque havia muitos e, como já disse antes, história a mais. E nessa noite, como nós não frequentávamos a “classe operária”, havia que ir vê-la ao Barreiro. E lá fomos para o barco.
A viagem de barco era belíssima, entre as luzes de uma margem e de outra, e, depois de chegados, a pé lá fomos ver a CUF, até à portaria de entrada dos operários do lado da cidade, e às voltas pelas ruas, percebendo muito bem porque uma se chamava “Rua do Ácido Sulfúrico”, porque cheirava a qualquer coisa cáustica. Tenho ideia de que não falámos muito no meio das luzes das torres das fábricas e do ruído industrial, numa paisagem que hoje quase não existe em Portugal, porque era uma experiência que nos tornava silenciosos. Se era para ver os operários, o que recebemos foi o pacote completo: o mundo da fábrica, de uma fábrica a sério, como não havia outra em Portugal, um mundo para nós tão estranho como Marte.
Quando nos cansámos, percebemos que não tínhamos sequer pensado em qualquer horário de regresso, mas conseguimos apanhar ou o último barco da noite ou o primeiro da manhã, já não me lembro. Mas tínhamos visto o Barreiro, como se fôssemos em peregrinação. Isto hoje pode parecer, a quem não viveu estes anos e estes momentos, insignificante ou trivial, mas foram estes que nos fizeram. E bem.»
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1 comments:
O meu primeiro Barreiro é diferente deste; como era também o da minha mãe, que colaborou nas iniciativas fantásticas da Maria de Lurdes Pintasilgo.
Bem-haja por ter colocado o texto de JPP na sua plenitude.
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