16.1.21

O confinamento do faz-de-conta

 


«O primeiro dia do confinamento geral não foi confinamento nenhum. Ou, para sermos optimistas, foi um “confinamentozinho”. Os relatos dos repórteres do PÚBLICO ou as imagens da televisão mostraram uma ligeira redução da actividade e do movimento nas ruas das principais cidades – mas não percebemos nessa actividade uma reacção aos avisos dos especialistas, nem aos alertas das autoridades. Vimos imagens de lojas a usar todos os tipos de expedientes para manter as portas abertas. Vimos pessoas a acorrerem aos supermercados atraídas por promoções. Em vez do novo normal do primeiro período de confinamento pressentiu-se um novo novo normal – 0 da indiferença e do relativismo. Um esboço de confinamento que não é confinamento nenhum. 

Não vale a pena cair na arrogância e dizer que os lojistas são incumpridores. Nem no moralismo de afirmar que os cidadãos são relapsos e indiferentes ao seu dever cívico. E ainda menos apoiar os que dizem que “isto” só lá vai com coacção. Vale, sim, a pena sublinhar duas reflexões: que o Governo está a falhar na sua missão de mobilizar os portugueses; e que as excepções ao confinamento foram talvez demasiado alargadas para que as pessoas percebam a gravidade da situação. Só passou um dia e é cedo para se questionar tudo – mas a continuação desta atitude colectiva, que levará ao agravamento da pandemia, exigirá provavelmente acertos. 

Não vai ser tarefa fácil. O Governo, acossado pelas dúvidas sobre a sua capacidade de antecipação ou pelo relaxamento do Natal, tem hoje menos credibilidade para mobilizar os portugueses. O Presidente, influenciado pelo contexto da campanha, deixou de ser tão interveniente e assertivo. O medo deixou de ter o seu poder dissuasor, apesar de hoje o número de contágios e de mortos ser dramático. O cansaço e a impaciência relativizam a forma como se encara a ameaça. Os que suspeitavam da eficácia de um confinamento com escolas ou consultórios abertos estão, no final do primeiro dia, a ter mais razão do que os que acreditavam ser possível uma solução de compromisso que evitasse males maiores – caso do autor deste editorial. 

Haverá quem defenda agora uma reacção mais musculada do Governo – já esboçada, aliás, no agravamento das multas. Acrescentar um estado de repressão ao estado de emergência será sempre o pior caminho. Resta a insistência na mensagem – mobilizando médicos e especialistas, que poderão dizer o que se passa nos hospitais ou insistir nas conclusões da ciência sobre as virtudes de um confinamento; e envolvendo o Governo, a Presidência e os partidos para se empenharem em mensagens capazes de comprometer e sensibilizar os cidadãos. Quanto mais tarde se iniciar esta tarefa, pior. A continuar assim, este confinamento do faz-de-conta está condenado a fracassar.» 

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