10.1.21

Saudade e zaragatoas



 

«É uma mulher antiga. Queixa-se da manhã glacial em morno amarume, "Ai,senhor António, até sinto o frio a entrar nos ossos." Fosse António um operário a quem o fiscal de obras perguntasse "O que fazes, aqui?", não responderia "Estou a construir uma catedral". Diria, quem sabe, "Trabalho para ganhar o meu pão". A resignação diligente habilitou-o com razoável destreza a tirar um café quase perfeito e a discorrer sobre a forma ideal da chávena ou a desejável temperatura da máquina. Vai-se-lhe o olhar adiante do verbo, aconchegando a mulher que se despede em ângulo agudo, devido às cruzes, "O pior é a saudade dos abraços e das coisas boas que perdemos; se ao menos nos deixassem tirar o açaime...". 

A saudade de que ela fala não é a "realidade essencial" erguida "à altura duma religião", como a definiu Pascoaes, mas a soma de perdas, de pequenos prazeres escoados, a raspadinha de tantas privações. Poderia ordenar um cadáver esquisito das suas paciências em solitude com as palavras que correram no ecrã enquanto o vocabulário lhe minguava: discriminação, covid-19, pandemia, sem-abrigo, infodemia, zaragatoa, saudade. 

Saudade, a palavra do ano na votação promovida pela Porto Editora, alinha, em letra minúscula, os eclipses da alegria que legendam o rosto da mulher devolvida, em ângulo agudo, à invernada. Se, ao menos, pudesse "tirar o açaime". 

Já a palavra máscara nem sequer foi a votos mas é-lhe tão afrontosa, espécie de zaragatoa ao pensamento, aflição em folha-de-flandres como a dos atavios de escravidão descritos por Machado de Assis, no início do conto "Pai contra Mãe", nas Relíquias da Casa Velha: "Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham, penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras." 

Um século depois, Bia Bulcão, a atleta brasileira que estagiou em Portugal à espera de vaga nas Olimpíadas de Tóquio, entrevistada pelo jornal O Globo, fala com ironia das regras apertadas. "Na esgrima", diz ela, "já estamos acostumados, é sempre de máscara." 

E a mulher antiga, em ângulo agudo, a vida inteira sem aulas de esgrima: "Todos os dias agradeço a Deus esta depressão que me anima."» 

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