14.1.21

Uma eleição inconstitucional?

 


«A primeira vez que li a notícia avançada pelo PÚBLICO, a 23 de Novembro, de que as cidadãs e os cidadãos que contraíssem covid-19 nos dez dias anteriores às eleições presidenciais seriam proibidos de votar fiquei estupefacto. Seria mesmo verdade que os preparativos para que um acto eleitoral seja seguro em pandemia incluíam proibir o exercício de um direito constitucional como é o direito ao voto? Certamente os actores políticos iriam reagir e encontrar uma solução que protegesse um direito constitucional tão fundamental. 

Parece que estava errado. A medida avançou e está em vigor. 

Em resposta a um email que enviei em finais de Dezembro à Comissão Nacional de Eleições a questionar sobre esta questão, recebi uma arrepiante confirmação: “caso fique infectado [com covid-19] e seja decretado confinamento após dia 14 de Janeiro, não poderá votar”. Por coincidência, com 22 anos, estas serão as primeiras eleições presidenciais em que irei poder participar – mas parece que há uma hipótese demasiado real de ver esse meu direito negado. É algo contraditório o constante apelo ao voto por parte de tantos políticos – especialmente o voto jovem – quando não têm problema algum em ver esse mesmo direito negado. 

Apesar da expectável onda de indignações nas redes sociais em finais de Novembro, a medida continua em vigor. Silenciosamente avança a preparação de uma medida de supressão do voto. Nas estimativas da altura do artigo deste jornal, mencionava-se que poderia afectar aproximadamente 50 mil pessoas. Na altura o número médio de casos eram cinco mil, não dez mil. Faça as contas. 

Em que país vivemos onde consideramos aceitável vedar a milhares e milhares de portugueses o direito ao voto, consagrado na Constituição? Que democracia é esta? Uma democracia fraca, possivelmente a mostrar sintomas de uma outra doença: os da apatia política. 

Lei Orgânica n.º3/2020 

Na resposta que recebi da CNE, fiquei a saber que esta medida só se tornou possível devido à aprovação em Assembleia da República da lei orgânica n.º 3/2020, que vem possibilitar o voto antecipado aos cidadãos e cidadãs que contraiam o coronavírus, mas apenas se o confinamento seja decretado até ao décimo dia antes das eleições. É também a lei que diz que se contrair o coronavírus depois de dia 14 de Janeiro, será proibido de votar. Lembre-se desta lei. Lembre-se ainda que foram os deputados e deputadas desta legislatura que consideraram a mesma razoável. 

Na minha pequena edição de bolso da Constituição da República Portuguesa, fui procurar como seria possível uma lei orgânica sobrepor-se à Constituição. Não sendo uma pessoa da área de Direito, questiono-me seriamente: como pode uma lei orgânica sobrepor-se à Constituição? Fui relembrado que o estado de emergência em que vivemos permite a suspensão de determinados direitos. Mas a medida em questão trata-se de um caso inaceitável de subversão do intuito deste (recorrente) estado de emergência. 

Lendo o ponto 6 do artigo 19.º da nossa Constituição, aprendemos que a “declaração do [...] estado de emergência é adequadamente fundamentada e contém a especificação dos direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso”. Estará prevista nesta declaração de estado de emergência a suspensão de direito ao voto para alguns? Admito que não a li. Se constar lá, é inadmissível. Se não estiver, não tornará esta lei orgânica inconstitucional? 

Deixo a questão para os especialistas. Mas não me venham argumentar que suspender o direito ao voto a milhares de portugueses é proporcional, razoável ou qualquer adjectivo que escolham para florear a situação. É inaceitável. 

Um cenário surreal: candidatos impedidos de votar

Serão as primeiras eleições na história do país em que um candidato ou candidata a Presidente da República poderá ser impedido ou impedida de votar nas eleições a que se candidata. Isso mesmo. Nada nos garante que nenhum dos candidatos não se encontre nessa situação. Já imaginou o surreal que seria? Afinal de contas, não há uns mais do que outros, os candidatos e candidatas têm que obedecer à mesma lei que vigora como toda a gente. 

Aproveito ainda para relembrar que tanto Marcelo Rebelo de Sousa como Ana Gomes já tiveram contactos de risco. O actual Presidente e novamente candidato tem estado esta semana em isolamento e também Ana Gomes teve de se isolar em período de pré-campanha. Mesmo num cenário de confinamento absoluto, é expectável e compreensível que outros candidatos ou candidatas possa contrair covid-19. O mesmo se aplica a pessoas a trabalhar em cada candidatura, a quem seria particularmente injusto ver o seu direito ao voto negado. Injusto e desnecessário, porque este cenário poderia ser prevenido. Com preparação. 

Outro cenário que me causa uma certa apreensão são os eleitores infectados, eventuais casos pontuais, que decidam desobedecer às ordens de confinamento. O que impede isto de acontecer? Nenhum agente de autoridade está a vigiar quem coloca o pé fora de casa em quarentena (e bem). Não será certamente a mesa de voto a verificar quem deveria estar em isolamento profiláctico e quem não. 

Portanto, como se fiscaliza esta medida? Não se fiscaliza, como de costume neste país. 

Para além de inconstitucional, a medida é ineficaz no seu objectivo. Em nada impede um eleitor absolutamente determinado a votar (e capaz de ignorar o seu papel enquanto agente de saúde pública) de sair porta fora e deslocar-se à sua mesa de voto. Se os deputados e deputadas tivessem o mínimo de respeito pelo eleitorado, teriam pensado em soluções que evitassem de modo eficaz que as pessoas com teste positivo tivessem de se deslocar para votar. O extraordinário é que a operação foi pensada: é o voto porta-a-porta. Mas talvez por motivos logísticos ou outros inimagináveis consideraram que seria razoável limitar este método de voto para quem só souber que está infectado até dia 14 de Janeiro. 

Ao leitor em casa pergunto: se ficar infectado depois de dia 14 e antes das eleições, irá de bom grado aceitar que não poderá votar? 

Eu certamente não o aceitarei de bom grado – mas cumprirei por um sentido de responsabilidade, que acredito que qualquer pessoa deve ter. Seria incapaz de colocar a vida de outros em risco. Mas fá-lo-ei profundamente revoltado por ver um direito meu negado – por falta de preparação daqueles que tinham e têm a responsabilidade de o preparar e que tiveram dez meses para o fazer. 

Sentir-me-ei roubado.» 

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