«Nem todos os portugueses partilham o sentimento de hiperidentidade que o Eduardo Lourenço elogiou na passagem da ditadura para a democracia. A crítica histórica é sentida por alguns como um atentado ao ser coletivo, enquanto a crítica literária, inclusive de autores que se distinguiram pelo julgamento corrosivo do seu mundo contemporâneo, como Eça de Queirós, levanta imediatamente um coro de protesto. O património literário ou histórico não é uma relíquia; Eça ironizou sobre o tema. Existe uma hipersensibilidade negativa que não parece espontânea, faz parte do jogo político mais recente.
A crítica é inerente ao devir de uma nação, não existe nem pode existir uma visão uniforme do que somos hoje e do que fomos no passado. Qualquer país é atravessado por divisões sociais com interesses divergentes e mesmo antagónicos, que se refletem em visões conflituosas do passado e do presente. É dessa dinâmica que se faz uma nação enquanto dimensão coletiva de um povo com património linguístico e cultural multidirecional, em permanente construção e reconstrução.
Quando organizei com o Diogo Ramada Curto o livro A memória da nação (1991), a ideia era justamente compreender as múltiplas dimensões de um devir histórico modelado por relações de poder em constante negociação, direitos contra privilégios, regimes de propriedade, formas religiosas e configurações culturais que contribuíram para formas plurais de identidade. Esse projeto era inspirado por três autores, Pierre Nora, que publicara os Lugares de memória, um vasto estudo coletivo do património francês como marca identitária, Alphonse Dupront, interessado na história do mito da cruzada e na fabricação do sentimento nacional, e Eric Hobsbawm, o historiador inglês mais influente do século XX, que estudou processos de invenção do passado. Embora a dimensão de classe social e de construção histórica estivessem presentes, a dimensão de género e a dimensão étnica ou racial não estavam assimiladas.
A diferença entre memória histórica, baseada na análise crítica do passado, e a memória coletiva, necessariamente plural, em permanente mudança em função das realidades do presente, que impõem reorganizações e amnésias na perceção do passado, ficou contudo clara. Existem intersecções entre a memória histórica e a memória coletiva, pois as políticas da memória desenvolvidas pelos poderes públicos procuram celebrar acontecimentos e erigir monumentos que consagrem os fundamentos dos respetivos regimes.
O conflito em torno das comemorações do centenário do Infante D. Henrique em 1960, que deixou traços no Padrão dos Descobrimentos e no arranjo da Praça do Império, opôs uma visão da história baseada na religião e nos homens providenciais, clara apropriação salazarista do passado, a uma visão da história baseada na dimensão coletiva da emigração em massa (um milhão e meio até ao início do século XIX, numa população que variou de um a três milhões), onde os interesses económicos e comerciais desempenharam um papel decisivo, sem esquecer a religião. A visão elitista do salazarismo, que bem cuidou dos interesses dos ricos, como assinalou Eduardo Lourenço, está expressa na fonte da Praça do Império, com os brasões de armas das casas nobres que teriam feito a expansão portuguesa. Nunca defendi a demolição destes monumentos por duas razões: o Padrão dos Descobrimentos foi objeto de um bom trabalho de adaptação, memorialização e atualização de programa, enquanto a fonte deve lá ficar como testemunho de um regime ditatorial e elitista que não pode inspirar ninguém com a cabeça no século XXI. Não falo sequer da proposta de restauro dos jardins kitsch com a heráldica colonial, é simplesmente ofensiva dos países africanos e asiáticos com quem devemos ter boas relações.
O projeto de 1991, que recusava a apropriação da linguagem da nação pela extrema-direita nostálgica, que eu distingo da direita liberal, precisa de ser atualizado. Nos últimos 30 anos Portugal aprofundou a sua relação com a União Europeia, embora a economia tenha registado uma relativa estagnação desde os anos 2000, agravada pela crise financeira de 2008 e pela crise da covid-19 em 2020. Esta relativa estagnação tem suscitado tensões numa população que criou expectativas de uma vida melhor que não têm sido satisfeitas. A desigualdade económica e social entre ricos e pobres, que se atenuou até ao final dos anos de 2000, aumenta de novo, com a apropriação de boa parte da riqueza por 1% da população mais rica. A emigração tem tido altos e baixos, mas em relação ao total da população Portugal tem uma das taxas mais elevadas de saídas acumuladas. Por fim, a imigração, que teve um pico com a independência dos PALOP, continua a fluir para cobrir as necessidades de trabalho agrícola que não atraem os portugueses, responder a condições políticas insuportáveis noutros países, e aproveitar as novas oportunidades de Visa Gold e impostos preferenciais para reformados estrangeiros.
Embora não existam estatísticas sobre a nova realidade racial da população portuguesa, é evidente que o impacto de duas gerações de imigrantes com diferentes origens exige um esforço de integração. A memória histórica das realidades da nossa própria emigração multicontinental pode ajudar. O debate em torno do racismo não pode ser varrido como um problema artificial, tornando equivalentes racistas e antirracistas, manobra maliciosa de naturalização e justificação da discriminação. Acusar de fratura da identidade nacional a denúncia do racismo é uma tentativa de calar os que sofrem e estão do lado da lei. Os últimos estudos económicos sobre discriminação racial, como o de Heather McGhee em relação aos Estados Unidos, certamente com problema mais fundo, mostram a importância de políticas de desenvolvimento integradas.
Todos conhecemos as sondagens europeias mais recentes que indicam 60% da população portuguesa com opiniões racistas. A minha definição de racismo envolve duas componentes, preconceito contra descendência étnica combinado com ação discriminatória. A maioria da população não está envolvida na discriminação de minorias, mas o problema deve ser tratado com toda a seriedade, pois existem crimes racistas regulares, como o assassinato recente de Bruno Candé, os constantes ataques físicos e verbais a dirigentes associativos e jogadores de futebol, as pichagens insultuosas nas paredes de associações e escolas, a interrupção de sessões escolares com mensagens racistas. As crianças devem ser protegidas de traumatismos que ficam para a vida.
As sondagens revelam, antes de mais, a ignorância da norma antirracista que prevalece no mundo desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948, a qual influenciou a nossa constituição e legislação penal, baseadas na noção de dignidade e igualdade de todos os seres humanos. Trata-se de uma falha clamorosa de educação cívica para a qual o Conselho de Educação já alertou e que exige ação do ministro responsável.»
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