26.7.21

O Otelo que escolho celebrar

 


«Não há mortes nas trincheiras deste tempo de redes sociais. Mas cada morte transforma-se numa trincheira. E com o crescimento de uma extrema-direita revanchista, cada morte tem a função de legitimar ou deslegitimar pedaços da nossa história. Essa parte não é nova. Quem pensa que o passado é uma coisa que está pousada para os historiadores contarem como foi nunca compreenderá a forma como todos os regimes, sejam ditaduras ou democracias, todas as correntes políticas, sejam de esquerda ou de direita, e todas as nações, sejam europeias ou africanas, precisam dele para se explicarem à luz do que é o seu presente e do que querem para o seu futuro.

Era inevitável que a morte de Otelo Saraiva de Carvalho, uma das figuras mais controversas do período revolucionário e pós-revolucionário, ele próprio cheio de figuras controversas, levasse à única forma de análise histórica que hoje conhecemos no espaço público e mediático: a maniqueísta. Se isso aconteceu com a morte de Marcelino da Mata, a léguas da relevância histórica e do impacto político de Otelo, como não aconteceria com a dele?

Por desconhecimento das pessoas quanto às suas posições políticas ou talvez apenas por se ter afastado, Salgueiro Maia (a quem Cavaco Silva recusou uma pensão póstuma enquanto as aceitava para ex-agentes da PIDE) foi dos poucos capitães de abril que sobreviveu à enxurrada de lama que a reescrita da história, sempre tão benigna com os cobardes criminosos do Estado Novo, lançou sobre aqueles jovens cheios de coragem. Mas é bom perceber quem eram. Talvez com a exceção do mais brilhante e sensato de todos, Melo Antunes, eram politicamente imaturos. Depois de 48 anos de ditadura, tirando alguns quadros do PS, os comunistas que vinham da clandestinidade e os que aceitaram participar na vida política institucional fraudulenta do Estado Novo, todos eram.

Os jovens capitães de abril não escolheram a história, foram escolhidos por ela depois de todos os velhos oficiais se terem acobardado, esperado pelo momento certo, fazendo cálculos às perdas e ganhos. Generais que não se esqueceram de aparecer para receber o poder, quando a vitória foi certa. Foram escolhidos quando foram atirados para uma guerra colonial anacrónica, injusta e condenada à derrota política. Foram escolhidos quando eram a última linha para dar o golpe de misericórdia a uma ditadura moribunda. A sua preparação política fez-se nas casernas, as suas leituras fizeram-se nos meses rápidos da revolução, o seu protagonismo foi meteórico. O papel que tiveram no PREC foi ditado por instinto, impreparação e, em muitos casos, doses excessivas e naturais de voluntarismo. Como acontece em qualquer país onde, durante meio século, a participação cívica e política se paga com prisão. Com todos os erros que cometeram, e Otelo estará entre os que cometeu mais, não posso esquecer o dia que permitiu que eu estivesse aqui a escrever o que escrevo. É provável que a sua impreparação política, que era a impreparação política do país, nem lhes tivesse dado um vislumbre do que aí viria.

Não venho do espaço político de Otelo. Pelo contrário, a esquerda onde me formei sempre o viu como um aventureiro irresponsável. E tinha toda a razão, como a história provou. O que veio depois confirmou que Otelo, com toda a sua coragem e voluntarismo, era vaidoso e politicamente impreparado. As FP25, fruto do desnorte de uma área política que, ao contrário do PCP, perdeu total relevância política depois do PREC, não foram “só” um crime. Foram uma traição. Otelo, que sempre se desresponsabilizou pela liderança política desta aventura criminosa, traiu o 25 de abril. As FP não foram apenas um episódio na vida de Otelo, confirmaram o percurso que fez naqueles anos.

Num país que nunca julgou ou condenou os crimes do Estado Novo, permitindo que torturadores e homicidas da PIDE nunca respondessem perante a justiça, faz pouco sentido criticar a sua amnistia. Resultou, com base na narrativa de imbróglio jurídico, da pacificação com a história, que também levou a esquecer o terrorismo do ELP e do MDLP, de onde vem o vice-presidente de um partido cujo líder escreveu ontem que Otelo devia ter morrido na prisão.

Otelo não é apenas Otelo, com todas as suas contradições, generosidades, crimes, valentias e vilanias. Otelo é, como todas as personagens da história, sempre mais contraditórias do que gostamos de as retratar, o que mais importante fez na história. No seu caso, o 25 de abril. A democracia, quando ele se voltou a candidatar à Presidência já distante dos anos conturbados pós-revolucionários (em 1980 não chegou aos 1,5%, bem abaixo dos 16,5% que tivera em 1976), ou quando concorreu em movimentos eleitorais (primeiro os GDUP e depois a FUP, que significativamente tinha a sua cara como símbolo), teve a cautela de circunscrever a sua relevância política a um período determinado.

Não foram pequenos os erros de Otelo e o que fez antes deles nunca os apagará. Mas à coragem daquele dia inicial inteiro e limpo devemos quase tudo. Houve um jovem capitão que, na companhia de muitos outros e quase todos esquecidos, fez o que velhos generais não se atreviam. Por isso, e apesar de vir de uma área política diferente de Otelo, aos que querem mais uma trincheira sobre um cadáver não faço companhia. Porque sei que não são os seus erros e crimes que querem atingir, mas o seu acerto: o 25 de abril. Só não o conseguem fazer de forma direta. Ainda. De Otelo, escolho o momento em que arriscou tudo num país onde tão poucos com muito mais poder do que ele estavam dispostos a fazê-lo. Chega para fazer uma vida.»

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4 comments:

Leituras de Salto Alto disse...

Trata-se de uma avaliação brilhante, esta, de Daniel Oliveira. Embora um ou outro aspeto mais contundente da crítica dirigida a Otelo me pareça ter como objetivo principal ganhar legitimidade para o elogio. E não era necessário.

nelson anjos

WonGesAda disse...

Distante do 25 de Abril e mal informado sobre os fatos que se lhe seguiram em terras lusitanas, também eu fico com o Otelo que nas palavras do escriba "arriscou tudo num país onde tão poucos com muito mais poder do que ele estavam dispostos a fazê-lo." E nada mais disse.

estevesayres disse...

Pouca coragem por parte daqueles que nunca quiseram saber o que se passou na realidade; "Só quem esteve “distraído” não compreendeu, com o desenrolar dos acontecimentos que nunca foi intenção dos “militares de Abril” derrubar o poder, mas sim “reformá-lo. Basta ver o papel que atribuíram, logo naquela noite ao fascista Spínola. Basta perceber que não estava nas mentes dos militares do golpe, quer a libertação dos presos políticos quer a decapitação da odiada polícia política do sistema fascista, a PIDE"! Um Ex-RPA-C

António Ladrilhador disse...

Com o devido respeito, penso que é insultar os restantes e valorosos Capitães de Abril estabelecer comparações com o Major Saraiva de Carvalho, relativamente ao qual muito haverá a dizer e sobre cuja pessoa e feitos refleti longamente em https://mosaicosemportugues.blogspot.com/2021/07/otelo-o-espinho-que-nem-morte-arrancou.html, que a convido a visitar.
Não se trata, de perto nem de longe, de uma perspetiva maniqueista, antes penso que há que separar o trigo do joio e não é pelo simples facto de alguém ter participado numa iniciativa extraordinária e louvável à qual todos tanto devemos que esse alguém deve ser idolatrado a despeito de quanto de menos bom possa ter feito.
Se quiser comentar o que lá digo, terei o maior gosto em a ler.