9.7.21

O que é novidade na falta de médicos?

 


«Um estudo revelou esta semana que o número de pessoas sem médico de família voltou a passar o milhão, o que não acontecia desde há cinco anos. Aliás, o tema foi então um centro da luta política, dado que o Governo eleito em 2015 tinha assegurado que haveria médico de família para cada pessoa sem falta até 2017, um compromisso importante e que revelava a sua preocupação com o reforço dos centros de saúde. Promessa solene, contas feitas, fracasso total. Nunca terá havido menos do que 700 mil pessoas sem médico de família e agora a situação piorou.

Como seria de esperar, a pandemia agravou a dificuldade, dado que exigiu muito mais do Serviço Nacional de Saúde, em condições de acesso mais difíceis. Entre março do ano passado e fevereiro de 2021, o número de consultas médicas presenciais nos centros de saúde terá diminuído em 46%, ou menos nove milhões de consultas, se bem que uma parte desse atendimento tenha prosseguido por via remota. No entanto, sempre que a consulta exige o contacto direto com os doentes, essa redução agrava os riscos de saúde. Esse impacto dificilmente podia ser minorado, nas condições em que pouco se sabia da doença e era preciso impor medidas prudenciais. Mas o desinteresse dos governos pelas condições estruturais do SNS agravaram uma fragilidade fundamental, que agora derrapou para números pesados.

A razão para a falta de médicos nos centros de saúde não é o inconveniente da deslocação para o interior, ou a inércia dos próprios profissionais. De facto, 709 mil das 1058 mil pessoas que não têm médico de família vivem na área de Lisboa e vale do Tejo. É na capital que faltam mais médicos. E faltam porque não há. Como se antecipava, este ano e no ano passado temos um pico de aposentações e os novos concursos ficam meio desertos, dado que os incentivos e a carreira assegurada a estes profissionais de há muito que não correspondem às necessidades do SNS. Já se sabia disso tudo.

Assim, é na gestão das capacidades profissionais que se revela a maior falha dos ministérios da Saúde (ou das Finanças, para ser justo não há ministra da Saúde que não saiba como resolver o problema). A evolução do número de médicos no SNS demonstra-o: ao longo de 2020, quando a pandemia explodiu, o serviço público foi sempre perdendo capacidade e em dezembro havia já menos 945 médicos do que em janeiro (foram recrutados alguns milhares de enfermeiras, mas ainda temos um rácio inferior ao da média europeia). Todo o ano de 2020, quando foram precisos mais profissionais para enfrentar o fluxo de doentes covid, foi um desastre, deixou-se andar. Entraram depois, só em janeiro, quase dois mil médicos que tinham terminado a licenciatura no verão anterior, iniciando então os seus estágios de especialidade. Entretanto, até maio já perdemos mais 400 médicos, tanto para a aposentação como para o privado. Todos os anos é assim e vai continuar a ser mês após mês. As promessas de novos concursos são entretenimento político.

A reforma estrutural que se impõe, e o nome aplica-se aqui, é de há muito conhecida: ir buscar médicos ao privado, oferecendo boas condições profissionais e criando carreiras com exclusividade que sejam a base do SNS. E, agora que vem uma “chuva de milhões” dos dinheiros europeus, como se diz, o Governo anunciou que a decisão sobre exclusividade é adiada. Será no dia de São Nunca, depois do almoço, para ser mais exato.»

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4 comments:

joão viegas disse...

Por favor, publique mais informação sobre este assunto. Ha dados, tanto quanto consigo entender. Por exemplo, este grafico :

https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php?title=File:Graduates_%E2%80%94_medical_doctors,_2008,_2013_and_2018_(per_100_000_inhabitants)_Health20.png

que indica que, pelos vistos, o numero de médicos formados por 100.000 habitantes em Portugal é mais do que razoavel, situando-se nos paises mais bem colocados, acima da França, da Alemanha, da Italia. Pura e simplesmente não se percebe. Eu vivo em França e vejo que aqui toda a gente tem um médico de familia (ha dificuldades de acesso em zonas de fraca densidade, mas adiante). Em Portugal, a sensação com que fico é que as pessoas vão ao médico da Caixa, com marcação com semanas de antecedência, e são examinadas à pressa 5 ou 10 minutos. Como se explica então o quadro que cito ? Onde estão os médicos ?

Boas

Joana Lopes disse...

João Viegas, os sistemas de Saúde em França e em Portugal são totalmente diferentes! Quanto à sua pergunta «Onde estão os médicos?» Estão, cada vez mais, no Privado, fogem do Público pelas razões indicadas no texto.

joão viegas disse...

Cara Joana Lopes,

Obrigado pela resposta. Sei bem que os sistemas são diferentes. Mas é util mesmo assim proceder a comparações. Para todos os efeitos, em França, os médicos de familia estão também "no privado" (com consultas reembolsadas pela segurança social e pelos seguros complementares, é certo...). No entanto, em termos de acesso da população a cuidados médicos, estarei errado se disser que em Portugal a situação é muito pior do que em França ? Isto é que merecia ser analisado em profundidade. Como é que um pais com mais médicos formados por 100.000 habitantes acaba por ter uma oferta de cuidados médicos menos acessivel do que um pais com um numero de médicos menor ? Isto significa, não apenas que os médicos portugueses fogem para o privado, mas também que trabalham quase exclusivamente para os mais ricos, ou não ?

Boas

Joana Lopes disse...

Em Portugal, quando se fala de «médicos de família», fala-se apenas do Público. Os médicos (e enfermeiros) fogem para o Privado porque as carreiras no Público não são revistas, estão há anos e anos sem qualquer progressão ou aumentos de salário e porque o Privado tem tido um crescimento vertiginoso, com ligação a grupos económicos poderosíssimos. Acresce que há uma grande distinção entre acesso dos funcionários púbicos e dos outros: os primeiros têm uma espécie de seguro de saúde para o qual descontam e sustentam fortemente o Privado, ao qual têm acesso por preços módicos. É tudo muito complicado.