«Cada refugiado afegão que aterrou em Portugal vinha acompanhado de uma única mulher. Caso tivesse mais, por lá ficaram — assim estabelecem os critérios da NATO, afirmou o ministro da Defesa. No estado em que estava o aeroporto de Cabul, percebe-se que ninguém tenha começado a discutir uma lista de embarque baseada no modelo familiar da arca de Noé. Resta saber se a bagagem em excesso largada em terra pode ser recuperada pelo Estado português ou se vai ficar definitivamente entregue ao cuidado dos locais.
A NATO garante que se limita a seguir o estabelecido pelos países de acolhimento, e não parece estar a mentir. No regime do reagrupamento familiar português, cada homem autorizado a residir em território nacional pode mandar vir uma esposa. A poligamia é para deixar lá nesses sítios exóticos; por aqui somos gente decente. E não estamos sozinhos: todos os Estados-membros afirmam solenemente a contrariedade do casamento poligâmico à ordem pública para rejeitar qualquer possibilidade de um muçulmano deambular por essa Europa fora com as suas quatro esposas. O nosso regime tem, aliás, por base uma diretiva europeia; a culpa só podia ser dos burocratas sem coração que legislam em Bruxelas.
Acontece que a dita diretiva só proíbe Portugal de autorizar a entrada das várias esposas quando o marido já mora por aqui e é casado. No resto, cada Estado-membro define se o círculo familiar relevante para o reagrupamento só integra a Malala, ou também abrange a Amina, a Nazia e a Farida. A opção por a Malala ser a única mulher que pode embarcar no avião é mesmo nossa.
As declarações enérgicas contra qualquer admissão da poligamia em território europeu são fáceis de perceber. Abrir a porta a hordas de muçulmanos com várias mulheres a tiracolo tem o condão de pôr toda a gente maldisposta. Os mais conservadores começam logo a bradar contra o multiculturalismo que já está a dar cabo das nossas instituições milenares — esquecendo que o regime nacional do divórcio já esteve mais longe de ser uma espécie de poligamia em série. Progressistas e feministas desatam a denunciar a desigualdade de um casamento onde o marido consegue ver-se livre da mulher dizendo três vezes talaq, enquanto esta tem de aturar homem até que ele se digne deixá-la ir à vida dela.
O que pouca gente sabe é que, pela calada, os tribunais têm recorrido regularmente a um ramo de direito pouco conhecido do grande público, o Direito Internacional Privado, para ir resolvendo os problemas concretos colocados pelos casamentos poligâmicos. Nunca se reconhece a validade de um casamento poligâmico quando um dos cônjuges seja português ou residente em Portugal, nem se permite a sua celebração em território nacional. Mas aceita-se que um segundo casamento seja considerado quando tiver sido celebrado num país que admite a poligamia, entre nacionais e residentes nesse país, sempre que não o fazer deixa a terceira parte ainda mais desprotegida.
Na situação das mulheres afegãs, é difícil dizer que não se justifica permitir a sua entrada. Nem que seja porque outro valor, superior à exclusividade do casamento, se impõe: a própria vida destas, muito provavelmente em risco. Podem deixar o Abdul trazer todas as suas esposas. Juridicamente, estamos equipados para lidar com isso. Os tribunais já mostraram ter capacidade para tratar os casamentos poligâmicos sem pôr em causa a sacrossanta exclusividade do matrimónio ou aplicar a sharia e obrigar a Yasmina a andar de burka. Resta saber se, politicamente, há vontade para o fazer.»
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1 comments:
Mas neste Portugal católico, viril e monogâmico, mesmo quando o divórcio entre casais unidos pela "Igreja" era proibido, para lá da "legítima", os homens podiam e podem ter amantes com casa posta ou saltitarem de prostíbulo em prostíbulo, uma espécie de "harém" colectivo. Era e continua a ser a cultura das "publicas virtudes e privados vícios"! Quanto à "legítima”, era e ainda será "comer e calar", obedientemente ao "pater familias"? E nada de “amásios”, ocasionais ou em permanência.
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