«De carro pelos subúrbios, constato este paradoxo: uma paisagem laissez-faire num território avesso ao liberalismo. Num bairro pacato, encavalitado, cada casa é de uma nação e respeita apenas a medida do sonho do seu proprietário. Chego a Lisboa e outro paradoxo: onde a sensibilidade é liberal, as pessoas e as casas tendem a parecer-se umas com as outras.
Quem não viaje para fora da cidade não dará conta da homogeneidade a que pertence e do conformismo reinante, independente do sentido de voto. Quem o faz todos os dias habitua-se à diferença, à desigualdade de circunstâncias, trajes e oportunidades, conforma-se (que remédio) à condição do trajeto: à ondulante perceção de classe que nele se projeta e se sedimenta. Conforma-se à ficção de que vive no lado errado da existência.
Fazia bem aos citadinos um estágio nas margens da periferia fora do âmbito das campanhas eleitorais. Perceberiam por experiência direta os benefícios da paisagem desregulada. Fazia bem aos periféricos um estágio nas avenidas. Perceberiam, por experiência direta, não existir um lado errado da existência; que, embora por fora se pareçam bastante entre si, tal como os seus penteados, restaurantes, comércio, escritórios, o interior dos outros é tão desregulado como as paisagens dos subúrbios. Incoerente, hostil, contraditório, mas também convencional, belo, pateta, ternurento, patológico, diverso, solidário, hospitaleiro. Estabelecidas as diferenças, somos todos muito mais parecidos do que imaginamos.
Ainda pela janela do carro, os cartazes dos vencidos. Que álbum de família. Basta uma madrugada eleitoral para, da noite para o dia, entrarmos no futuro pela estrada do passado. Não me refiro à comédia que colore as campanhas: os nomes castiços, as gafes, os lemas, o ímpeto delirante ou as emoções desvairadas. Toda essa comédia é um espelho falante. Quando o ridicularizamos, escarnecemos de nós mesmos e do lugar que nos calhou. Mas isso vem antes do plebiscito. É um riso nervoso, coletivo, meio redentor, que nos prepara para um novo ciclo de disparates e tentativas. Refiro-me, antes, aos cartazes dos vencidos no dia a seguir às eleições. Às promessas, às certezas enfáticas, às intenções grandiosas, ao álbum disperso de maus retratos e maus fatos, sorrisos amarelos e arzinhos vitoriosos perante o correr indiferente do trânsito local.
Aquele assegura que nascerá aqui um multiusos. Outro, uma biblioteca onde haverá para sempre um descampado. Estradas, aterros, passadiços, piscinas municipais. Nesta rotunda, anuncia-se uma grande mudança. Na seguinte, a mudança em marcha é para continuar. Progresso, desenvolvimento. Olha-se em redor — a paisagem bizarra cala e consente. Que legenda, os cartazes dos vencidos. O eleitoralismo revela-nos pessoal e coletivamente. Vamos dizendo a nós e aos outros que fazemos e acontecemos enquanto as nossas vidas se parecem cada vez mais com cartazes do partido errado deixados à mercê das estações — desbotados, fora de época, rasgados. Os cartazes dos vencidos são um monumento aos nossos estragos: deixem-nos lá de castigo, a ver se aprendemos alguma coisa.»
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