17.12.21

Os impostos que os ricos não pagam e o que podíamos fazer com eles

 


«Há exatamente dez dias, o World Inequality Lab publicou a segunda edição do World Inequality Report. O relatório atualiza muitos dos indicadores que já estavam disponíveis na primeira edição, publicada há quatro anos, complementando-os com novidades como a desigualdade das emissões de carbono e a desigualdade de género no rendimento de trabalho. Por outro lado, a análise da distribuição da riqueza está mais completa e melhorada, devido ao esforço continuado dos investigadores de todo o mundo que têm contribuído para este projeto colaborativo que é o World Inequality Lab.

Os 10% mais ricos do mundo ficam com 52% do rendimento mundial (antes de impostos, mas considerando pensões e subsídios de desemprego), ao passo que a metade mais pobre tem apenas 8,5%. Imagine um mundo com 100 pessoas e 100 bananas. Estes números querem dizer que 10 pessoas comem 52 bananas (mais de cinco cada uma), ao passo que 50 pessoas comem apenas 8,5 bananas (menos de um quinto de banana). Vinte e cinco vezes menos bananas, portanto. Nós temos a sorte de viver no continente mais igualitário, no qual as 50 pessoas mais pobres comem quase 20 bananas e as dez mais ricas comem 35 bananas. Mesmo assim, são seis vezes mais bananas para cada um dos dez mais ricos.

Se acha a desigualdade do rendimento chocante, talvez queira saltar este parágrafo. Segundo o relatório, os 50% mais pobres do mundo têm apenas 2% da riqueza; que é como quem diz: nada. Já os 10% mais ricos têm 76% da riqueza. Voltando à analogia das bananas, imaginemos um mundo com 100 pessoas no qual, das 100 bananeiras existentes, 50 pessoas dividem duas e 10 pessoas são donas de 76. A Europa volta a ser a região menos desigual: os dez mais ricos teriam 50 bananeiras, e os 50 mais pobres teriam quatro. Mesmo assim, dá 50 vezes mais bananeiras para cada um dos dez mais ricos.

A pandemia só veio piorar as coisas. Entre 2019 e 2021, a riqueza dos 0,001% mais ricos do mundo aumentou 14%. Este valor compara-se com uma taxa de crescimento da riqueza total de 1%, o que mostra que os super-ricos viram o seu património crescer a um ritmo 14 vezes superior ao das restantes pessoas. Já a riqueza do grupo mais restrito dos bilionários aumentou 50%, ou seja, mais um dólar por cada dois dos (muitos) que já tinham antes da pandemia.

Será que estas pessoas assim tão ricas pagam a sua justa parte de impostos? Umas semanas antes, em novembro, tinha saído outro relatório importante, o The State of Tax Jusitce 2021, da responsabilidade da Tax Justice Network, da Global Alliance for Tax Justice e da Public Services Internacional. Também uma segunda edição, depois da primeira que foi publicada no ano passado. Como andamos com o nariz metido na pandemia, estas coisas passam-nos, infelizmente, ao lado.

Este relatório calcula a receita fiscal perdida utilizando informação que a OCDE compila a partir de uma nova obrigação das multinacionais, que consiste em declarar às autoridades tributárias os lucros e custos que têm em cada país em que operam, em vez de reportar apenas o total, sem discriminação de países. Este “country by country” reporting ajuda os países a detetar comportamentos abusivos e foi proposto pela Tax Justice Network em 2003. Mas demorou a ser adotado, e os primeiros dados disponíveis são de julho de 2020. A Tax Justice Network estima as perdas de receita fiscal identificando discrepâncias entre a atividade económica contabilizada pelas multinacionais em cada país e o lucro que nele declaram. No que diz respeito às offshores, os autores do relatório utilizam métodos estatísticos que comparam as estatísticas macroeconómicas com as declarações individuais de património. Estes métodos começaram a ser desenvolvidos pelo economista Gabriel Zucman no seu muito citado The Missing Wealth of Nations, publicado no Quarterly Journal of Economics em 2013.

Em todo o mundo, perderam-se 483 mil milhões de dólares de receita fiscal no último ano. A maior parte advém das estratégias de planeamento tributário agressivo das multinacionais, que desviam lucros dos países onde efetivamente produzem ou vendem para outros com taxas de imposto mais baixas. São 312 mil milhões de dólares de receita fiscal perdida. A riqueza financeira escondida em paraísos fiscais offshore é responsável pelas restantes perdas, num total de 171 mil milhões. Este montante de receita fiscal perdida seria suficiente para vacinar três vezes a população mundial.

Podíamos pensar que estes esquemas de esconder o dinheiro, ou de o transferir artificialmente para países de impostos baixos, utilizam essencialmente ilhas paradisíacas com coqueiros e águas transparentes. Também, mas não só. Aliás: nem sequer principalmente. A Tax Justice Network calcula que 39% dos esquemas são baseados apenas no Reino Unido e nos seus territórios e dependências. Juntando os Países Baixos, o Luxemburgo e a Suíça, já temos 55% das manigâncias. E juntando os restantes países da OCDE, chegamos praticamente a 80%. Portanto, quatro em cada cinco dólares são subtraídos aos cidadãos deste mundo por práticas tributárias lesivas praticadas nos países da OCDE.

E Portugal nisto tudo? Outra vez olhando para o rendimento antes de impostos, mas tendo em conta pensões e subsídios de desemprego, na alegoria das bananas, as dez pessoas mais ricas comem quase 40 bananas. Do lado da riqueza, são proprietárias de 60 bananeiras. Na UE, apenas a Estónia tem maior desigualdade do rendimento e a desigualdade da riqueza só é superior em seis países (medidas por este indicador). Portugal é, por isso, um país bastante desigual. Podemos não ter bilionários daqueles que estão no topo dos mais ricos do mundo, mas os ricos do nosso país comem muito mais bananas e têm muito mais bananeiras do que as pessoas normais.

Os cálculos da Tax Justice Network mostram que Portugal perde anualmente mais de mil milhões de dólares (quase 900 mil milhões de euros) devido às práticas fiscais abusivas. O património colocado em jurisdições offshore faz voar 470 milhões de receita fiscal, ao passo que as práticas de otimização agressiva por parte das multinacionais fazem escoar 420 milhões.

Como lembram ambos os relatórios – o do World Inequality Lab e o da Tax Justice Network -, os problemas só se resolvem cabalmente com cooperação internacional. Que tem, aliás dado passos (tímidos e incompletos) recentes, como a iniciativa da taxa mínima global promovida pela OCDE. Mas isso não é uma desculpa para cruzarmos os braços. Uma parte desta riqueza offshore tem origem em esquemas de corrupção e crimes de colarinho branco que está nas nossas mãos combater. Assim haja exigência cidadã e vontade política. Quer saber o que representam estes 900 milhões? Em 2019, Portugal gastou 790 milhões de euros com o abono de família, uma prestação que alivia a pobreza das crianças deste país. Imagine que gastava o dobro.»

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