2.4.22

Portugal: o país que os portugueses estavam proibidos de conhecer

 


«A Censura durou ininterruptamente 48 anos da ditadura. A PIDE e a polícia atacavam os corpos, a Censura atacava as cabeças. “Fazer” as cabeças necessita de tempo, poder, proibições, ameaças, violências diversas, matilhas de vigilância, medo e autocensura, mas “desfazê-las” é muito mais difícil. Isso significa que a “obra” da Censura ainda está connosco, sem reconhecermos a sua assinatura sinistra, o que a torna mais poderosa. A essa marca inconsciente de 48 anos, que os quase 50 anos de democracia não conseguiram eliminar, somam-se agora novos impulsos censórios vindos também das instituições, mas também “de baixo”, do activismo político à esquerda e à direita, e das redes sociais. É por isso mesmo que falar e mostrar a Censura (na verdade um complexo de censuras para os livros, os periódicos, para a música, o teatro, os filmes, a publicidade, tudo o que podia mexer com as cabeças) é a melhor pedagogia cívica nos nossos dias.

Na verdade, sendo a Censura poderosa pelo rastro de interditos e “inconveniências” que deixou – um exemplo recente é falar das crises estudantis dos anos 60-70 como se fossem apenas movimentos espontâneos de revolta, minimizando o papel decisivo das organizações políticas clandestinas, o PCP e os grupos esquerdistas, acabando por as “despartidarizar” como se o papel dos partidos “manchasse” o valor dos eventos –, é também a mais fácil de denunciar, quando se vai à sua realidade. E isso significa ir muito para além da acção contra o explícito político, e ter uma concepção holística da Censura.

É o que, integrado nas comemorações de Abril da Câmara Municipal de Lisboa e com o seu apoio, a exposição que será inaugurada na próxima semana em Lisboa com materiais das censuras do Arquivo Ephemera vai tentar fazer. A exposição estará no Edifício do Diário de Notícias, por debaixo das grandes pinturas murais de Almada, incluindo a que ilustra este artigo. A sua citação titular é de Salazar, um activo mentor e legitimador da Censura, mas duas frases, entre milhares produzidas de 1926 a 1974, retratam a “obra” da Censura e pouco importa sobre que livros ou autores foram escritas:

“parece que o autor esteve em qualquer vila, ou aldeia, e escolheu para protagonista do seu romance a família mais asquerosa do povoado”

“as obras destes autores não devem ser consentidas em agremiações operárias, por razões óbvias”

As “razões óbvias” explicam tudo. Visitemos o arranque e a moldagem da Censura nos anos 30 que a fez como existiu até 1974. O conflito entre a Itália e a Etiópia não podia ser comentado, porque isso era “propaganda antifascista”, do mesmo modo que não se podiam fazer “referências menos respeitosas para com o Chefe do Governo Alemão”, Adolfo Hitler. Aliás, condenar a invasão da Etiópia era proibido por “antibelicismo”. Como “propaganda inconveniente” eram cortadas as referências a “António José da Silva (O Judeu)” queimado pela Inquisição. Duarte Nuno de Bragança não podia ser identificado como pretendente ao trono português, mas a restauração da monarquia na Grécia era cuidadosamente protegida de dichotes.

Corrupção não havia e as negociatas da Sociedade dos Açúcares eram “cortadas totalmente”. Em Espanha podia-se falar de “escândalos”, por cá não. Violências também não, o país tinha “brandos costumes”. Por exemplo, não se podia saber que em Peniche um “motim”, provocado por protestos contra a prisão de pescadores que pescavam com dinamite, teve dois mortos. Violência sobre as mulheres, infanticídio, aborto, pedofilia, violações – tudo cortado.

A religião era intocável e a Censura escondia dezenas de conflitos anticlericais. A queixa de um missionário sobre as dificuldades de ensinar a doutrina cristã aos indígenas, porque estes consideravam que as histórias de “Criador que rege o céu a terra” eram da mesma natureza das suas histórias com “leões, hienas e chacais” – subversivo.

Falar do analfabetismo no exército era antimilitarismo. Falar da lepra em Portugal? Proibido, porque era “assunto fechado”. Um jornalista estivera preso num local com muitos ratos – corte total. A tuberculose como “doença social” era perigosíssima para os censores: não bastavam sanatórios, mas ter vida “sem fome” – corte total. Não podia haver queixas sobre o “caríssimo” serviço telefónico, sobre a falta de assistência aos pescadores do bacalhau na Terra Nova, etc.

Suicídios, como se sabe, não havia. Era um país propício a quedas em poços e a acidentes com armas de fogo. Uma “figura popular” teve um misterioso “desaparecimento” (expressão muito usada para os suicídios) – corte total “por se depreender que é suicídio”. Um tenente em Penacova fez um desfalque e matou-se – corte total. A Greta Garbo chinesa, a atriz Ruan Lingyu que se suicidara em 1935, era objecto de uma atenção detalhada da censura, que suprimia com vigor as “doentias sugestões”.

A moral e os bons costumes eram, junto com a subversão, real ou imaginada, e o desrespeito o núcleo duro da acção da Censura. E nisso os censores, muitas vezes tratados como pouco inteligentes e ainda menos cultos e “burros” no sentido popular do termo, eram mesmo bons.

Não se podia saber que em Évora uma rapariga tinha desaparecido da “casa da família”, coisa assaz inconveniente. Umas “quadras em que se canta o amor prostituído, totalmente cortadas por imorais”. Uma “versalhada para fadistas” cortada “por porca”…

Quarenta e oito anos assim. O Portugal que aparece nos cortes das censuras não era o Portugal que existia. Esse os portugueses não o podiam conhecer. Alguns saudosistas de Salazar e alguns neo-saudosistas actuais, que arranjam mil pretextos para legitimar a ditadura, lavando-a das suas violências para diminuir a democracia, têm nesta matéria um osso duro de roer. Eles sabem disso, eles sabem como foi, mas fazem de conta.»

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