2.5.22

A Rússia e o pavor do “Ocidente”

 


«O ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Serguei Lavrov, continua a repetir o chorrilho de mentiras e de propaganda com que o Kremlin tenta convencer o mundo sobre a natureza da “operação militar especial” na Ucrânia. Desta vez, numa entrevista à agência de notícias estatal da China Xinhua, entreteve-se a aprofundar essas mentiras com uma nova invenção geoestratégica: a necessidade de “libertar o mundo da influência do Ocidente”, a que atribui responsabilidade pela “opressão colonial” dos povos, na qual não falta o racismo e o “complexo de exclusividade”.

Esta declaração enquadra-se na propaganda do Kremlin sobre a “desnazificação” da Ucrânia ou a suposta intenção da NATO em prosseguir o seu avanço para o extremo leste da Europa. Mas cria uma noção nova no choque entre os grandes blocos de interesses políticos mundiais. A ameaça para a Rússia já não vem da NATO, dos Estados Unidos ou da União Europeia. O que agora está em causa é o Ocidente – do qual Lavrov exclui, por exemplo, a América Latina, uma suposta vítima da “opressão colonial” à qual os Estados Unidos impõem “como e por que padrões deve viver”. E, claro está, a própria Rússia.

Historicamente, a Rússia faz parte do Ocidente desde que se começou a envolver nos grandes assuntos europeus, no limiar da Idade Moderna. A maior ambição de Pedro, o Grande, que Vladimir Putin tanto venera, foi tornar a Rússia uma potência europeia. E depois dos confrontos do século XVIII e, principalmente, da derrota de Napoleão, a Rússia entrou definitivamente no “concerto das nações” que impôs a paz de Viena, conservou o despotismo e adiou a “Primavera dos Povos”. A Rússia de Chagal ou Kandinsky, de Dostoievski ou Pushkin é tão “ocidental” como a Alemanha ou a França. Lenine ou Trotski são produtos da cultura europeia, pelo menos na sua fundamentação teórica.

A declaração de hostilidade ao “Ocidente” cabe bem numa entrevista à agência Xinhua – porque põe a Rússia ao lado da China, numa clara “entente cordiale” contra os Estados Unidos e, por arrastamento, os seus aliados. Mas esse projecto de aliança, que já se consolida pela cooperação económica, nada tem que ver com o conceito global do Ocidente, apenas com a recusa da expressão política que o domina: a democracia.

Lavrov e Putin (como outrora os czares ou os sovietes) preferem o autoritarismo ao liberalismo, a doutrina do Estado em detrimento das liberdades individuais. O seu problema é não tolerarem que os ucranianos queiram outra via. Reduzir o Ocidente ao estatuto de inimigo que trava as suas ambições imperialistas serve como instrumento de propaganda para criar uma aliança antidemocracia. Mas, como quase toda a argumentação do Kremlin, não passa de uma falácia.»

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