«A decisão do Grupo Parlamentar do PSD de aceitar a liberdade de voto na questão da eutanásia corresponde inteiramente a um aspecto fundamental do programa do partido. Verdade seja dita que também a decisão de referendar corresponderia, em ambos os casos por razões idênticas. Tanto há legitimidade na votação parlamentar desta matéria como numa consulta popular, embora as dificuldades de uma e de outra sejam desiguais.
Todos os programas do PSD, o original de 1974, a revisão de 1992 e a de 2012 (que deviam ser de leitura obrigatória para os militantes, para não se dizerem muitas das asneiras que se ouvem), acentuam a laicidade do partido, mas com um papel genético para o personalismo, nos pontos sobre a Pessoa humana (com maiúscula), no mesmo plano do liberalismo político e do socialismo democrático, da social-democracia. A combinação destas três fontes é identitária e distingue o PSD dos outros partidos, embora haja em cada uma delas de per se proximidades. Um desses casos é o personalismo, em que o PSD se aproxima do CDS e se afasta do PS, que centra a sua visão política na cidadania, no cidadão e não na pessoa. É uma diferença relevante e tem consequências.
O personalismo é uma doutrina de origem cristã, embora tenha uma expressão filosófica mais lata, mas que mostra o papel que a formação cristã tinha nos fundadores do partido. Se fossem mações a escrevê-lo – embora houvesse mações entre os primeiros “PPD” –, o programa seria sem dúvida diferente nesta matéria. Mas Sá Carneiro, em particular, trouxe da sua formação cristã dois aspectos relevantes no plano ideológico e político: a doutrina social da Igreja e o personalismo. No caso do personalismo havia que o formular em conjugação com o carácter laico do partido.
Nos debates da revisão programática de 1992, em cuja elaboração e discussão interna participei, este foi um dos pontos mais discutidos na comissão política, com um papel activo de Durão Barroso e Silva Marques, e com uma particular atenção de Cavaco Silva. Guardo as notas desse debate e o ponto fundamental foi a afirmação de que o partido considerava que havia uma dimensão metapolítica, que estava para além da política e que a liberdade da “pessoa” nas suas convicções íntimas não podia ser reduzida à expressão de políticas concretas, legítimas em democracia, mas que podiam atentar contra os seus princípios. Era por isso que se considerava que havia questões que transcendiam o plano político, como o aborto e a eutanásia, e em que o papel da liberdade individual, religiosa ou cívica, no entendimento da moral individual e pública, teria de ser respeitado. Logo, essa dimensão de liberdade traduzia-se também na liberdade de voto dos deputados ou quaisquer eleitos do partido. Nem sempre foi fácil essa aceitação, como se viu no voto pioneiro de Pedro Pinto, e nos votos solitários subsequentes meus, de Rio e Silva Marques sobre o aborto.
Dito isto, a questão da eutanásia é da mesma natureza da do aborto, e compreende posições de carácter religioso, de ética profissional, de direitos humanos, de liberdade individual no mais profundo sentido, que não são fáceis de defrontar, muito menos no quadro de uma lei para uma sociedade naturalmente dividida nas suas opções metapolíticas. É também uma matéria em que valores cada vez mais ausentes na actual deriva para a radicalização, como seja o respeito pelas convicções alheias, e, se quisermos, uma delicadeza especial no tratamento deste tipo de matérias, devia estar presente.
Há pouca coisa mais íntima e “pessoal” do que a morte. É também por isso uma questão na qual a liberdade individual, a escolha de cada um na sua solidão final, tem um valor supremo. Sabemos que essa liberdade é limitada pela dor e pelo sofrimento, mas é um absurdo pensar que não exista um direito individual a não sofrer, a liberdade de acabar com a dor ou com a extrema degradação física, quando nenhum outro método existe para as mitigar. Sim, tudo o que possa ser feito antes deve ser feito, mas nem tudo pode ser feito e tem de haver a liberdade de alguém dizer: “Assim não quero viver, ajudem-me a morrer com a dignidade que a minha vida deixou de ter.”
Admito que muitos médicos e enfermeiras tenham objecção de consciência que os impeçam de participar numa morte assistida e isso deve ser respeitado. Mas é uma das muitas hipocrisias em que vivemos, ignorar que muitas eutanásias consentidas se passam nos nossos hospitais pelas melhores razões: a recusa do sofrimento gratuito em quem o não quer ter e deseja ter este último acto de vontade e liberdade.
“Ninguém vive para si mesmo. Ninguém morre para si próprio”, dizia um cartaz numa manifestação contra a eutanásia em 2018. Com a primeira frase estaria de acordo, mesmo percebendo que o seu significado religioso não é o meu, mas aceito, não por Deus, mas pelos “outros”. Mas a segunda frase só pode ter sentido para quem é crente, e eu não sou. Ela obriga-me a ser, e por isso afecta a minha liberdade.
Eu votaria a lei da eutanásia, mesmo mal formulada e imperfeita, porque, tanto quanto possível, quero ser dono da minha morte.»
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