18.7.22

A «Sinfonia do Adeus» e o desconcerto da saúde

 


«Sinfonia do Adeus, foi com este nome que ficou conhecida a Sinfonia No 45, em fá sustenido que Haydn compôs em 1772 para tentar convencer o príncipe Nikolaus Esterházy, seu patrono, a libertar mais cedo os músicos da orquestra que o acompanhavam durante a sua longa estadia de verão no longínquo palácio Esterháza (Fertöd, Hungria) e que, já cansados e saturados, ansiavam regressar a casa, para junto das suas famílias (em Viena, Áustria).

Haydn teve então a astuciosa ideia de compor uma sinfonia em que os músicos, após tocarem a parte que lhes cabia, iam sucessivamente abandonando o palco. No final, apenas Haydn e o último músico ficavam em cena para tocar a parte final do concerto. O príncipe captou a mensagem e ordenou prontamente o regresso a Viena de toda a orquestra.

Recordei-me desta história a propósito dos últimos acontecimentos que têm marcado a área da saúde em Portugal, com a debandada generalizada dos médicos especialistas dos hospitais públicos. Tal como os músicos de Haydn, anestesistas, obstetras, pediatras, internistas, cirurgiões gerais, ortopedistas, cardiologistas, médicos de família, para não citar outras especialidades, têm vindo sucessivamente a abandonar o Serviço Nacional de Saúde.

Mas, ao contrário do príncipe Esterházy, que rapidamente percebeu a situação e tomou a decisão certa para assegurar a fidelidade e a motivação daqueles que estavam ao seu serviço, as nossas autoridades ligadas à saúde continuam a querer colmatar os buracos com contratos pontuais e avulsos de tarefeiros e, mais grave, de médicos não qualificados para a função.

É como se num concerto os vários naipes da orquestra viessem tocar a horas desencontradas, durante o tempo que tivessem disponível, todos desirmanados e sem maestro para os dirigir. O resultado não seria certamente um concerto musical, mas uma cacofonia digna dum teatro de robertos.

Fui médica dos Hospitais Civis de Lisboa durante 33 anos. Foi lá que fiz toda a minha carreira profissional, aprendi tudo o que sei, ensinei tudo o que sabia, apliquei os meus conhecimentos em benefício dos doentes e fiz grandes amizades. Apesar de todas as insuficiências relacionadas com as condições de trabalho, das múltiplas dificuldades diárias, do peso excessivo do serviço de urgência e dos baixos salários, era lá que gostava de trabalhar e que tencionava ficar até à idade da reforma. Porque abandonei então o SNS 11 anos antes do que tinha previsto?

Quando iniciei a minha actividade, não existiam contratos individuais de trabalho. Os serviços hospitalares tinham um quadro clínico constituído por chefes de serviço, especialistas e internos da especialidade. Todos funcionavam em equipa, sob a batuta do director, integrados numa hierarquia de antiguidade e competência aceite por todos e com o mesmo objectivo: tratar os doentes o melhor possível, segundo o estado da arte.

Havia tempo para as consultas, para as cirurgias, para aprender e para ensinar; tempo para discutir os casos mais complexos e tomar as decisões terapêuticas mais adequadas; em suma, tempo para pensar. Havia coisas a melhorar? Com certeza, nomeadamente no que diz respeito à organização, à produtividade e à gestão dos recursos, já que os médicos têm fama de ser maus gestores. Mas essas medidas tinham de ser tomadas para servir o sistema, e não contra ele.

A progressiva transformação dos hospitais públicos em empresas e a aplicação cega do espírito empresarial e dos critérios puramente economicistas ao conjunto das actividades hospitalares, em vez de melhorar o sistema, veio destruí-lo. Com o pretexto da falta de recursos financeiros e o propósito de aumentar a produtividade a qualquer preço, começou-se a poupar nos equipamentos, nos materiais consumíveis, nos tempos de consulta e, por fim, nos recursos humanos.

Ao mesmo tempo, exigiu-se maior número de consultas, maior número de cirurgias e mais turnos de urgência. Os médicos foram tendo menos peso na escolha dos equipamentos e dos materiais mais adequados às suas funções. Deixaram de poder controlar a marcação e distribuição de consultas e cirurgias cuja prioridade passou a ser burocrática, em vez de clínica. Viram-se assoberbados com um número cada vez maior de doentes pelos quais eram responsáveis, com cada vez menos meios ao seu dispor.

A pressão dos números exigidos pelas administrações foram progressivamente atropelando o tempo dedicado à discussão de casos, ao ensino e à aprendizagem. O tempo gasto em absurdas tarefas burocráticas foi aumentando à custa das funções assistenciais. Um clima de stress e de irritabilidade permanentes substituiu um ambiente de colaboração e camaradagem. O dia-a-dia passou a ser uma luta constante contra um sistema hostil à essência da profissão médica e à qualidade dos serviços prestados.

A desmotivação foi-se instalando, o “amor à camisola” foi-se perdendo e num contexto de baixos salários, face à existência de outras alternativas, estavam criadas as condições para a debandada geral. Só não viu quem não quis ver. E acabou por se deitar fora o bebé com a água do banho.

A consequente falta progressiva de recursos humanos no sector público abriu caminho quer aos contratos individuais de trabalho quer aos tão falados tarefeiros. Os primeiros previam um determinado número de horas semanais, em horário variável, com ou sem urgência, consoante as necessidades do serviço em causa e as disponibilidades do médico.

Embora fosse uma colaboração com alguma regularidade, não pressupunha, nem exigia, uma integração plena nas actividades diárias do serviço. O caso dos tarefeiros foi pior, porque a inexistência contratual de qualquer ligação a determinado hospital e a permanente descontinuidade dos serviços prestados favoreceu a desresponsabilização em relação aos doentes, o que é a negação da ética médica.

E é aqui que voltamos à nossa orquestra. Pelos vistos, há ainda quem teime em convencer-nos de que, com músicos arrebanhados a esmo, que aparecem quando lhes convém, que nunca se viram nem ensaiaram juntos e não conhecem a partitura, se pode tocar uma “Sinfonia do Novo Mundo”.»

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