«Durante a pandemia, o SNS demonstrou ser a única verdadeira resposta de saúde pública. Mas foi de tal forma posto à prova que todas as suas fragilidades vieram ao de cima. Já aqui expus o que toda a gente percebeu no início deste verão: que as urgências dependem, para necessidades permanentes, de prestadores externos que recebem mais do que os internos – um tarefeiro pode ganhar mais em 24 horas do que um médico num mês, o que é convite à irracionalidade. E que as empresas que fornecem estes serviços, muitas delas criadas por médicos saídos do SNS, tendem a falhar quando todo o sistema passa a depender delas. Que é impossível organizar escalas com trabalho externo especializado nestas dimensões.
É preciso dar autonomia para os hospitais contratarem e aumentar de forma permanente e muito substancial os médicos que escolham a exclusividade, para que não se torne mais atrativo abandonar o SNS. Mas isto custa dinheiro e implica contrariar a receita que tem vingado: não se resolve nada no SNS, tapa-se buracos fora. E é esta a política alternativa da maioria que tem espaço mediático. Deixar o SNS morrer porque reforça-lo (e à escola pública, e à segurança social) é “preconceito ideológico”.
A demissão de Marta Temido, num sistema que está a demonstrar brutais insuficiências, acaba por acontecer num caso em que ele até não falhou. Ninguém espera que não haja limite de vagas em UCI neonatal e a grávida que faleceu estava, de facto, a ser transferida para um outro hospital da zona, acompanhada por uma equipa clínica, seguindo o procedimento normal. O sistema funciona em rede. Falhas é quando a rede não pode responder. Não era o caso. É mentira o que disse Miguel Pinto Luz – a grávida foi admitida nas urgências do Santa Maria. As equipas estavam completas, havia vagas de neonatologia na área metropolitana, havia transporte especializado, os meios humanos e materiais para lidar com uma grávida em risco estavam disponíveis. Não faço ideia se tudo foi bem feito, mas nenhuma informação nos diz que não. Seja como for, no que dependia do sistema, tudo esteve preparado. E pelo sistema, e não por cada caso concreto, que a ministra responde.
Mas quem tem memória há de se lembrar dos nascimentos em ambulâncias que deixaram de ser notícia no dia em que um ministro contestado caiu. Se há área onde é fácil criar uma perceção é esta. Se há área onde a corporação tem acesso aos media é esta. Se há área onde se movem interesses poderosos e muito dinheiro é esta. Se ainda por cima for real a decadência dos serviços, então tudo fica mais fácil. A melhor forma de não ser notícia é não aborrecer nenhum interesse. Maria de Belém era perita nisso e, apesar da sua dependência umbilical (e posteriormente, como deputada e presidente da comissão parlamentar de saúde, financeira) a interesses privados, conseguiu deixar uma boa imagem que, não tivesse sido uma catastrófica candidata presidencial, perduraria até hoje.
Se há coisa que não se pode dizer sobre Marta Temido é que servia outros interesses, ao contrário de muitos dos que fora e dentro do PS, nas ordens e na imprensa, fizeram dela um alvo a abater e, nesse objetivo, foram mais eficazes do que a pandemia. O seu pecado, e é por causa dele que a sua demissão era inevitável, foi não ter aproveitado a força política que ganhou durante a pandemia – chegou a ser a ministra mais popular governo – para exigir meios e apoio para uma reforma difícil, mas urgente. A começar pelas carreiras médicas e de outros profissionais de saúde.
Marta Temido deixou-se inebriar pelo galanteio politicamente vazio de António Costa, que chegou a levá-la ao palco de um congresso do PS, promovendo-a a quase candidata a líder. E, talvez acreditado no estatuto de heroína da Covid (quando, de facto, resistiu ao que poucos dos seus críticos resistiriam), não fez o mais urgente: exigir, depois da brutal pressão da pandemia, apoios absolutamente excecionais para a recuperação de um sistema que já acumulara dificuldades.
Mas Costa não apoia ninguém por causa de políticas. Só por amizade, talvez. E mesmo assim... Marta Temido há de o ter percebido quando Fernando Medina disse que se o SNS está em crise não será por falta de dinheiro – afirmação que Costa corroborou recentemente. A porta da rua era serventia da casa e os agradecimentos de vários dirigentes do PS pelos serviços prestados, sem uma critica à falta de apoio dos últimos meses, são de um cinismo revoltante. Costa teve a decência de ser parco no elogio, apesar do que ainda há um ano dizia dela.
O substituto sabe com o que não pode contar – meios – e com o que terá em barda – agradecimentos. Sobreviverá se ceder sempre a quem tenha poder de pressão. Se não atrapalhar a modorra dos próximos quatro anos. Só que, como recordou uma fonte do governo ao Expresso, ainda antes da demissão, “foi Costa quem quis o novo estatuto como está, foi Costa quem disse há duas semanas que a solução não é pôr mais dinheiro na Saúde, é Costa quem não tem saído em defesa da sua ministra.” Foi Costa que criou condições para esta demissão.
Já fora o SNS que começara por alimentar as crises políticas em torno dos orçamentos de 2021 e 2022 – com o BE, nos dois, com o PCP, no segundo. Ambos avisaram que depois da Covid o sistema iria colapsar. A pressão dos comentadores fez o favor de acompanhar Costa na chantagem política, ignorando as causas. Mas o tempo deu razão aos dois partidos: de nada serve abrir vagas para mais médicos que inevitavelmente ficariam vazias. Era preciso mexer nas carreiras, o que custa dinheiro – que será poupado mais tarde, por evitar remendos. Só que abrir vagas que não se ocupam tem uma vantagem: a intenção de resolver o problema sai de graça.
Os que verdadeiramente querem defender o SNS – e não são seguramente as Belém e Adalbertos desta vida e ainda menos os bastonários que cumpriram o papel que sabemos durante a pandemia – iludem-se se esperam boas notícias. Marta Temido foi um cordeiro sacrificial e o isolamento para a queda seguiu o padrão habitual de Costa. A culpa da falta de rumo dentro de um governo hostil a que haja qualquer rumo é dela. Mas, agora, temo que venham os interesses de sempre – será muito interessante ver quem, no vazio da transição, conseguem colocar na Comissão Diretiva do SNS. Só a cedência a esses interesses compra a paz junto dos lóbis privado e corporativo mais fortes neste país. Aqueles a que a maioria da comunicação social responde, a que o bastonário responde, a que uma parte do PS responde. Como disse a CEO do Luz Saúde, este é o melhor negócio depois das armas. Os apetites são vorazes.
Depois das primeiras lutas – longe vai o governo que comprou a guerra dos contratos de associação dos colégios em nome da racionalidade do sistema e dos seus custos –, António Costa só quer poucas ondas. Se não se fizer aeroporto, se as carreiras médicas que segurem profissionais tiverem de esperar uma década, paciência. Estes quatro anos são para preparar outros voos. Os seus. O resto vai-se gerindo. Sem lealdades, como exigem os grandes voos. E até se perceber que os problemas que se acumulam em ministérios – os que ele ignora e os que ele piora – são responsabilidade sua, assim serão as coisas. Quando fica insuportável, manda-se ministro borda fora.»
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2 comments:
Marta Temido foi uma " criacäo " formatada e mesmo disciplinada pelo PM Costa, que quiz fugir
às represálias cientificas dos grandes baröes da Medicina de Lisboa e Porto, escolhendo uma técnica de Organi-zacäo Hospitalar de Coimbra aparentemente humilde e submetida; e com essas coaccöes e debilidades o combate ao Covid-19 oscilou entre um descalabro inicial aterrorizante, mediocre e altamente penalizador para os pacientes infectados que culminou com a o cenário dantesco de um modelo de crise-similar-da um-queda-de-Airbus quotidiano que originou mesmo o envio de uma equipe de socorro militar da Alemanha para tentar reduzir as dimensöes da tragédia, facto politico único na Uniäo Europeia nos meses iniciais apocalipticos de 2021.Niet
Queima o fósforo alheio, até virar carvão.
Quem é amiguinho, quem é ?....
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