1.11.22

Caderno de significados



 

«Afinal. Quer dizer afinal que apesar de tudo, além do mais, em conclusão. Afinal, talvez haja recessão. Talvez. Talvez quer dizer que pode haver ou pode não haver, não é, afinal, certo. A recessão que o governo negou que estava para vir pode, afinal, chegar. E a perda do poder de compra que o governo anunciou, até à aprovação do Orçamento do Estado na generalidade, que não aconteceria em 2023, afinal, parece, como a recessão, que talvez venha mesmo a acontecer. O ministro das Finanças já, parece, se disponibilizou para implementar o aumento dos pensionistas, porque a inflação é maior do que aquilo que o governo esperava. Afinal, todo o documento foi feito com base em pressupostos que, já sabíamos todos, pareciam estar errados. Ou, pelo menos, demasiado otimistas.

A língua portuguesa tem, estima-se, quase 230 mil palavras. A cada uma delas corresponde um e só um significado, embora erradamente atribuamos sinónimos perfeitos a muitas delas. Por exemplo, lindo, bonito e belo são utilizados como sinónimos, mas as três palavras não querem dizer exatamente a mesma coisa. Ou então a língua portuguesa não seria tão rica, variada e não disporia dos recursos estilísticos que a tornam no que de facto é. Isto porque as palavras têm demasiada importância no espaço público e no discurso político para que as utilizemos de forma imprecisa, vaga, errada ou, pior, propositadamente enganosa. Recessão e austeridade não são sinónimos. Mas uma recessão leva a períodos de austeridade e de contenção. Perda de poder de compra quer dizer que, com o mesmo dinheiro nominal, se compram menos bens e serviços. E, por fim, que quando a inflação está alta e, apesar de aumentos salariais, das pensões e dos apoios sociais, se esse aumento não corresponder ao valor da inflação, cada um de nós terá, na verdade, menos dinheiro disponível no fim do mês. Como dizia em tempos, aflito com os números, o agora secretário-geral das Nações Unidas, é "fazer as contas".

Os políticos, sobretudo, porque eleitos e detentores da soberania popular que lhes é delegada, têm, antes de mais - e muito haveria a dizer nessa matéria - de cuidar bem da língua. Mas, muito pior que os atropelos gramaticais, a ausência de concordâncias entre sujeito e predicado e a pobreza dos recursos - 230 mil palavras parecem não chegar - utilizados, é o facto de escolherem as palavras erradas. Consoante estamos diante de discursos de esquerda ou de direita, aos mesmos conceitos são dadas diferentes fórmulas. Uns dizem "patrões", "trabalhadores", "grande capital".

Outros escolhem para descrever a mesma realidade "empresários", "colaboradores", "grandes empresas". A esquerda não hesita em dizer que nos tempos da troika Portugal viveu em austeridade. Agora, com um quadro de economia de guerra depois de uma economia de pandemia, a mesma esquerda recusa a ideia de austeridade. Há outros exemplos da forma como a linguística é utilizada pelos fazedores de discursos e criadores de frases que demonstra bem que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Orçamentos a mais da direita são Orçamentos "retificativos", ou seja, assume-se que o primeiro Orçamento falhou e que é preciso retificar, corrigir, melhorar. Se o caso se der com governos de esquerda, o "retificativo" passa a ser um Orçamento "suplementar", recusando a ideia de que se falhou na primeira versão, apenas se "acrescentou" algo mais, por causa da "incerteza".

Muitos destes truques acabam por passar despercebidos à maioria dos cidadãos. Mas, ao serem utilizadas de forma intencional palavras que não transmitem a realidade, mas que a mascaram, iludem ou suavizam, o resultado é uma perceção errada dessa mesma realidade e do que ela pode trazer.

Na utopia da construção de país decente será possível, pergunto, sem ser preciso um caderno de significados, que, por sistema, nos possam dizer a verdade?»

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