2.11.22

Silêncio nada inocente seguido de omissão significativa

 


«Para recusar os resultados eleitorais, Bolsonaro não tinha os partidos que o apoiaram, enquanto esteve no poder. Nem sequer boa parte dos seus aliados mais próximos para alem do círculo familiar. Preferiram a segurança das vitórias que tiveram para o Congresso, Senado e governadores a aventuras que só poderiam acabar mal. As imediatas declarações de Arthur Lira, o seu aliado na liderança do Congresso, reconhecendo a vitória de Lula, deixaram isso claro. Não tinha qualquer apoio externo, sobretudo dos Estados Unidos. O que, por consequência, levava a que não houvesse espaço para qualquer intervenção militar, se ela fosse sequer uma possibilidade.

A única forma das coisas descambarem seria o bloqueio dos camionistas, que pôs em causa o abastecimento de supermercados, a indústria e até o fornecimento de hospitais, levar a reações da esquerda (alguns setores ameaçaram dar esse passo, perante a inoperância das forças policiais), o caos instalar-se e haver espaço para impor um estado de exceção. Seja como for, não havia qualquer possibilidade de golpe.

Pensar que Jair Bolsonaro ficou calado durante dois dias porque é um “moleque” a fazer uma birra repete a insistente infantilização da extrema-direita que já deveríamos ter abandonado. Durante um ano, o presidente alimentou a tese da fraude eleitoral. Perante os resultados, ficou em silêncio, permitindo que a contestação subisse de tom. Mesmo sendo inconsequente, deixou o país de sobreaviso e mostrou o poder que os seus fanáticos podem ter sobre a democracia. Não foram apenas meia dúzia de malucos que agiram por sua conta e risco. Foram, como Trump mostrou no Capitólio, a sua tropa de indefetíveis, pronta a ser usada se as coisas correrem mal a Lula, como dificilmente não correrão.

Cometeu um erro: as operações da Polícia Rodoviária Federal para bloquear a chegada de eleitores nordestinos às urnas tornou mais difícil a narrativa do golpe lulista fora da bolha alienada de apoiantes do Presidente. O ambiente, depois das cenas de milhares de pessoas barradas nas estradas do Nordeste, era exatamente o oposto ao que ele queria vender: era o da desconfiança sobre a tentativa de fraude bolsonarista.

O prolongamento daqueles bloqueios só foi possível com alguma conivência inicial da Polícia Rodoviária Federal. Em muitos estados, a mesma PRF que no domingo andou a parar autocarros para impedir cidadãos de votar, mostrando excesso de zelo na fiscalização rodoviária, revelou-se bastante amistosa com quem, tentando paralisar o país, quis evitar que a vontade popular fosse respeitada. Se ignorarmos que se trata de uma força policial, foi coerente nos seus objetivos. Bolsonaro também mostrou que uma parte de forças de segurança lhe continua fiel.

Foi preciso Alexandre Morais, de um Supremo Tribunal Federal que se mostrou sempre firme na defesa da democracia e do Estado de Direito nestas eleições, deixar claro que ou o diretor da PRF desimpedia as estradas ou ia preso para as coisas começarem a mudar. Empresários e governadores que apoiaram Bolsonaro viraram-se contra esta tentativa de criar o caos económico. Mas não se pode dizer que Bolsonaro tenha recuado, até porque o silêncio não o comprometera com uma ação que obviamente nada teve de espontâneo. Deixou que passassem dois dias para mostrar o dano que poderia causar. É importante, para perceber o estrago potencial de um bloqueio destes, recordar que foi assim que Allende começou a cair, no Chile. Bolsonaro deixou claro que, para sair do poder, tiveram de lhe pedir com cuidado. Que é ele que decide, com o silêncio ou com a palavra, se o país pode regressar à normalidade.

Como de costume, nada fez de original. Limitou-se a seguir a tática de Donald Trump, que apesar de não ter sido reeleito conseguiu segurar a sua influência política. Claro que há algumas diferenças: Bolsonaro não tem poder financeiro próprio e não tomou conta de um partido estruturante para a democracia brasileira, porque esse partido não existe.

O equívoco de muita gente, quando falamos de figuras como Trump ou Bolsonaro, é pensar que estamos, já não digo perante estadistas, mas perante os políticos de extrema-direita do passado, desejosos de um Estado forte. Nada disso. Estamos perante subversivos enomaníacos. Bosonaro e Trump, assim como muitos dos seus aliados na Europa, não se contentam com uma passagem pelo poder em que seriam domesticados. Nem sequer fazem questão de governar. O seu projeto é tornar a democracia inviável através da destruição e descredibilização das instituições. Elas podem funcionar no exato limite em que lhes garantam a ocupação do poder. Quando lhes constrangem esse poder, mesmo por vontade popular, eles ameaçam com o caos.

No seu discurso, feito 48 horas depois do que era devido, Bolsonaro apoiou os movimentos golpistas, criticou os “métodos da esquerda” (aqueles que os seus apoiantes usam sistematicamente), chamou para si as vitórias da direita que já o abandonou, autoelogiou-se e, mais importante, nunca reconheceu, pela sua boca, a vitória legitima de Lula da Silva. Pelo contrário, falou da reação popular à injustiça. Deixou a tarefa de aceitar a transição para o chefe da Casa Civil. Ou seja, confirmou que sairia sem desistir da vitimização. Bolsonaro só aceita partir porque não tem apoio político, institucional, externo e militar para um golpe. Manterá todas as dúvidas sobre legitimidade do novo poder e viva a fidelidade da bolsa de fanáticos que regressará quando as coisas ficarem difíceis. Seja para o país, como tropa de choque contra Lula. Seja para ele, se vier a ser julgado.

O longo silêncio de Bolsonaro não resultou de desalento. Serviu para mostrar a ameaça que quer manter sobre a democracia. A ideia de que se Lula vencesse haveria uma guerra civil, expressa por alguns democratas, corresponde à aceitação deste poder de veto sobre a democracia dos seus inimigos. Essa é a batalha que ainda não foi vencida. Muitos julgavam que o Capitólio mataria o trumpismo. Como sabemos, continua vivo e perigoso.»

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