«No meio da algazarra instalada e que nos é servida, em palpitantes fascículos, por cada sessão da comissão parlamentar relativa à TAP, torna-se difícil fixar a atenção nos verdadeiros assuntos de Estado. A atenção disponível tende a ser monopolizada pelos episódios mais suculentos, que revelam, sobretudo, o estado a que o Estado chegou. O grotesco usa ser atraente.
O envolvimento de personagens reais, vulgo respeitáveis políticos e seus gabinetes, adjuntos proscritos e ministros contactados de urgência noite dentro, mais um sortido inabitual de polícias e secretas mobilizadas a partir do topo das suas hierarquias, são condimentos que tornam a coisa muito picante e, por essa via, verdadeiramente irresistível. Mas estes segmentos mais divertidos e o impacto lúdico que geram não retiram a enorme gravidade de muito do que vai vindo à tona e que não é apenas periférico.
Há assuntos seriíssimos em cima da mesa, que merecem um tratamento à altura da sua importância. O que vale uma oportuna advertência: mesmo quando rir se afigura ser o melhor remédio para lidar com tanto despautério, devemos fazê-lo sob a égide desta quadra de Aleixo: “Julgando um dever cumprir,/ sem descer no meu critério,/ digo verdades a rir,/ aos que me mentem a sério.”
No meio da turbulência instalada, é fundamental não deixarmos que os epifenómenos nos vedem o acesso aos fenómenos. Fenómenos entendidos como o naipe de questões fundamentais, suscitadas na turbulenta comissão de inquérito. É muito importante que a cidadania ativa separe o trigo do joio e não deixe ficar sem resposta algumas perguntas capitais.
Permitam-me dar alguns exemplos, começando por matéria já algo esquecida, dado o desvio de rota operado na comissão: por que motivo foi paga uma indemnização à eng.ª Alexandra Reis, quando ela própria, pouco tempo antes do famigerado acordo, se dispusera a sair da comissão executiva da TAP sem reclamar qualquer pagamento, tal como é hoje público e foi reconhecido pela própria? Com base em que critérios e/ou pareceres os responsáveis políticos da altura anuíram ao pagamento feito? Em que medida tinham estes responsáveis conhecimento da disponibilidade da eng.ª Alexandra Reis para deixar a comissão executiva sem qualquer contrapartida?
Noutro plano: é ou não é verdade que o celebérrimo plano de reestruturação da TAP estava guardado no computador do dr. Frederico Pinheiro? É ou não verdade que só estaria nesse computador? Quem determinou essa opção? Como se compatibiliza ela com a preservação do que agora se diz ser informação classificada? Tem o Estado meios para preservar informação classificada em casos de quebra de confiança, ou terá de continuar a utilizar primitivos métodos musculados de ação direta? Como se justifica a intervenção, que tenho por ilegal, do SIS? Quem assume a responsabilidade por essa intervenção (o que se distingue de saber quem o terá chamado a intervir)? Para quem acha essa intervenção legalmente justificada, em que normas legais se baseia? Não vale ensaiar explicações do tipo “o SIS tinha de intervir por ter havido crime”, para depois, com a mesma candura, dizer que o SIS pôde intervir porque não houve crime”!
Muitas outras questões relevantes carecerão de resposta. Mas estes esclarecimentos ajudarão a levantar o véu sobre quatro pontos cardeais que envolvem opções tomadas e os seus protagonistas: como se administra; como se gere o dinheiro público; como se age e como se reage. A bem da democracia, do Estado de direito e do estado dos direitos.»
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