2.12.23

A ideologia antidemocrática do justicialismo

 


«Como já se está em plenas campanhas eleitorais, duas pelo menos, a das legislativas e a interna do PS, e há a percepção de que estamos num fim de ciclo, não se discute, como se devia, como chegámos aqui. A tudo isto se soma uma cobardia generalizada face ao Ministério Público, quer porque se tem culpas, quer porque se tem medo. O único actor político que nos últimos tempos mostrou que não tinha esse medo foi Rui Rio, mas lembrá-lo é incómodo, quer para o PS, quer para o actual PSD que o quer esquecido, por ser uma sombra incómoda.

Este silêncio tem também outra razão, sussurrada como um vento forte, mas pouco visível: é que a actual crise política resolveu um problema que a direita nunca tinha sido capaz de resolver, afastar António Costa. É verdade que o PS ajudou, a começar pelo próprio Costa, que sempre escolheu mal à sua volta, e que também o Presidente fez o que pode nos últimos tempos. Mas, se voltarmos atrás, mesmo nos momentos mais complicados para o PS, ou nas relações com o Presidente, Costa parecia atravessar incólume as tempestades.

Não era inteiramente verdade, mas as fragilidades pareciam não atingir o coração da coisa, Costa estava para durar e mesmo aqueles que sonhavam 24 horas por dia em derrubá-lo reconheciam isso. E, de repente, Costa cai não porque os seus inimigos políticos o tivessem derrubado, nem pela luta política normal, mas por uma política anormal em democracia, uma mistura grande de incompetência e irresponsabilidade e uma ideologia corporativa antidemocrática, o justicialismo.

É por isso que se devia falar, e muito, deste evento, porque ele transcende a prática normal da democracia e é relevante para todos, sejam da situação ou da oposição. Porque o justicialismo não é redutível ao confronto partidário, não é do PSD contra o PS, ou vice-versa, não é da direita versus a esquerda, ou vice-versa. É uma intervenção no terreno da política democrática de uma concepção corporativa que encontra legitimação numa ideia de superioridade do seu poder assente numa bondade, honestidade e integridade atribuídas a uma casta, que precisa de ter inimigos para se justificar como superior. E esses inimigos são os políticos em democracia, o “outro” poder.

Detendo poderes consideráveis, uma total independência funcional, e uma completa impunidade, deveriam ter muito mais escrutínio, que os obrigasse a combater mais o crime de forma sólida e competente e com resultados – sim, o crime de colarinho branco, o crime dos políticos, o crime dos empresários, o crime de todos os criminosos. E não serem eles próprios os agentes das fugas de informação sempre sem autor, e os anjos do Bem organizadores de encenações televisivas, que quase nunca levam a nada, mas são do melhor para as audiências.

O justicialismo é uma forma mais sofisticada de populismo, mas muito próxima da substância do populismo que alimenta o Chega. Como se verifica no caso actual, os resultados da sua acção podem ser instrumentalizados, o que faz a direita radical e o lucrativo jornalismo de escândalos, retaliação e vingança, cuja ideologia também mergulha nas mesmas fontes. Mas o mecanismo do justicialismo actua para além dos seus efeitos no equilibro político, no reforço da imagem da casta e na intangibilidade dos seus poderes, sempre apresentados como sendo em nome de um valor maior que superaria os estragos menores que provocam.

Esta semana é um bom exemplo do que estou a falar e, de novo, da cobardia de não discutirmos o que se passa. Uma procuradora escreveu o único artigo de opinião em que, falando explicitamente do que se está a passar, denunciou como actuam os mecanismos de poder internos ao MP, em particular os sindicais, para criar uma muralha de impunidade à volta dos procuradores e impedir o funcionamento de qualquer hierarquia. Foi imediatamente sujeita a um processo interno. Abertura de noticiários na televisão? Nada. Solidariedade? Salvo raras excepções, que incluem a deste jornal, nenhuma. O medo é forte, a utilidade para outrem, muita.

Mas mais coisas aconteceram. Vários inquéritos do MP a políticos, com a habitual fuga de informações para condenar antes de qualquer tribunal, foram arquivados porque não havia prova de crimes. Como aconteceu com Miguel Macedo e Eduardo Cabrita, os estragos estavam feitos e ninguém se responsabiliza. O mais escandaloso foi o inquérito contra a presidente da Câmara de Matosinhos, também arquivado há dias, por ter contratado o seu chefe de gabinete sem concurso público, crime que, pelos vistos, 307 autarcas também cometeram. E a questão é que toda a gente sabia que o arquivamento iria acontecer, porque os chefes de gabinete são escolhidos por confiança pessoal, mas mesmo assim atirou-se com mais uma mancha para a multidão que se alimenta de manchas, em particular nas redes sociais. E se fizesse aqui uma lista sobre os inquéritos que, pressuroso, o MP abre mesmo a coisas que nada têm a ver com crimes mas que aparecem na comunicação social especializada nas malfeitorias, e não levam a lado nenhum, o PÚBLICO não teria espaço. Qual é o mal? É que imediatamente as pessoas se interrogam. Se o MP abre um inquérito, é porque há alguma coisa.

Estou consciente que há muitas vezes uma linha fina entre criticar o MP e querer estar acima da lei e não ver os seus crimes expostos e sujeitos a sanção. Mas aqui não há uma linha fina, há até uma bastante grossa que deveria existir entre a justiça e a política, e o justicialismo apaga-a todos os dias.

Só há uma maneira de salvar a democracia nesta crise, é António Costa (e é só desse que estou a falar) ter mesmo cometido o crime para que se presume que haja “indícios”, e que motivou o célebre parágrafo que provocou a inevitável demissão do primeiro-ministro. Abriu a crise em que estamos apenas a começar a mergulhar.»

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1 comments:

António Alves Barros Lopes disse...

«Só há uma maneira de salvar a democracia nesta crise, é António Costa (e é só desse que estou a falar) ter mesmo cometido o crime para que se presume que haja “indícios”, e que motivou o célebre parágrafo que provocou a inevitável demissão do primeiro-ministro. Abriu a crise em que estamos apenas a começar a mergulhar.» - Termina Pacheco Pereira.

Efectivamente!
Portugal, País, Paraíso...Cinema Paraíso!
- Querem melhor???
- "Segredo de Justiça"?
- "Fugas de informação??
Tudo ultrapassado!
O sistema até avisa os presumíveis criminosos de que estão a ser vigiados!!!
- Querem melhor???