23.1.24

Desumanização normalizada

 


«São homens portugueses, sobretudo, solteiros. A idade oscila entre 45 e 64 anos. O rendimento social de inserção é o principal meio de subsistência, frequentaram o Ensino Básico, apresentam problemas de dependência de álcool ou substancias psicoativas. Era este o retrato dos sem-abrigo, em linhas gerais, feito em dezembro de 2020, no âmbito da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem Abrigo. Três anos depois, o retrato sociológico deverá ter sofrido alterações, sendo notória a presença nas ruas de imigrantes sem teto. Mas há um dado novo preocupante: o número não cessa de aumentar.

Uma realidade que tentamos ignorar. Como se nos cruzássemos na rua com espetros, levam a vida acondicionada num saco de supermercado. Por vezes, interrogamo-nos: o que terá acontecido para chegar ali. E logo essa imagem desoladora é substituída pelas preocupações do nosso dia a dia. Tais imagens, no entanto, permanecem, como aquela que vi, há dias, a descer para o metro da Gare do Oriente, em Lisboa. As laterais de um átrio gigante ocupadas por camas improvisadas, sem uma réstia de espaço em branco, aqui e ali uma cabeça. Outras sem ninguém, esses voltariam à noite ao seu frio e duro leito improvisado. E a vida corria, pessoas apressadas, como eu, à procura da entrada do metro, rumo à baixa.

A normalização do desumano. Dizem-me que é assim há anos. Fui confirmar. À procura no arquivo, encontrei a mesma imagem que me chocou: “17 de dezembro de 2011. Reportagem com os sem-abrigo em Lisboa - Gare do Oriente”, informa o registo do arquivo. Terá algum deles conseguido voltar a viver com dignidade? Que vida deixaram para trás, uma família, um emprego, a casa a que regressavam todos os dias.

E nós entramos no metro, rumo à baixa, num sábado à tarde cheio de sol, como se os cobertores do infortúnio da Gare do Oriente fossem uma instalação artística da modernidade.»

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