3.2.24

Anda tudo muito nervoso...

 


«A frase do título devia ser: anda tudo muito nervoso com distracções e pouco nervoso com o que é realmente importante. É um resultado conjugado da indústria de distracções, da indústria da superficialidade e da indústria do engraçadismo. As fábricas destas indústrias estão sediadas nas redes sociais e os patrões destas indústrias são agências e consultores de marketing, ou seja propaganda, agências de comunicação profissionais, lóbis, empresas, partidos e, nalguns casos e para certas matérias, serviços secretos de vários países. Desta cloaca das redes sociais passam para a superfície na comunicação social, da que vive das emoções para ter audiências à que vive do jornalismo de vingança e que tem uma agenda política.

O objectivo é servir os seus donos e senhores, são pagos a preço de ouro, e tem gente muito competente. O resultado é tornar, nas democracias, a opinião pública e, subsequentemente, os eleitores, em sujeitos de manipulação, que aceitem ou recusem ideias, pessoas, eventos, falsificações, conspirações.

Referi três indústrias, simplificando. A indústria da distracção é a mais importante e as outras são ramos que alimentam a distracção. Gera nos adultos o equivalente ao défice de atenção das crianças, uma das pragas actuais no ensino. Muitos mecanismos são da mesma natureza, mas aqui são adaptados aos adultos com muito sucesso. O mecanismo principal é entreter os seus alvos, de modo a que tenha o efeito de esquecer a vida miserável da maioria das pessoas – salários, casas, empregos, afectos, esperanças frustradas, vidas de insatisfação –, e trocá-la por uma espécie de adicção ao entretenimento imediato que é uma droga dura, cujo efeito é tornar as trivialidades do dia coisas aparentemente sérias e interessantes. Memes, circulação de vídeos engraçados, frases assassinas, tweets de especialistas no vazio ou na agitação excitante dão origem a “casos” que a comunicação social amplia e a que dá uma fachada de seriedade. O objectivo é provocar ou fúria ou arregimentação, para trivialidades apresentadas como escândalos que alimentam os exércitos radicalizados que são o público destas coisas e ocupar-lhes o tempo, as emoções e a atenção.

Querem exemplos? A questão da publicidade do IKEA, os cartazes anti-sionistas transformados em cartazes anti-semitas (não é a mesma coisa) de uma manifestação, por aí adiante. Que adianta dizer face à distracção mobilizadora que cartazes e propaganda publicitária são, na sua maioria, social e politicamente comprometidos com ideias e causas que, se fossem discutidas a sério, seriam muito mais polémicos do que os painéis do IKEA. E quanto aos cartazes anti-sionistas são bastante mais inócuos do que o “from the river to the sea” (alguém me explica por que razão a maioria das pichagens e cartazes pró-palestinainos são ditos e escritos em inglês, o que deve querer dizer que não querem mobilizar os portugueses, mas apenas uma clientela juvenil universitária…), esse, sim, pondo em causa a própria existência de Israel mais do que os seus actos. Ou no que se diz e se mostra em cartazes nas manifestações contra as vacinas, ou nos painéis do Chega.

Distraiam-se, pois, das guerras, dos que estão a ser traídos nessas guerras, da ingovernabilidade que nos vai cair em cima num período de crise mundial, dos abusos do MP, das violações dos direitos com prisões sem prazo para interrogar, de escutas telefónicas feitas anos a seguir para ver se se encontra qualquer crime no seu alvo, do agravamento das capacidades dos Estados, português inclusive, para nos espiar, etc., etc., etc…

Esta indústria da distracção trabalha em conjunto com a da superficialidade. Que bom que é tornar questões simples (já para não falar das complexas) em platitudes, vulgaridades e lugares-comuns, para circularem melhor no mundo da distracção, para que se pense o mínimo ou mesmo nada, aderindo ou recusando as ideias, pessoas, causas e coisas. Esta indústria vive também da ignorância agressiva, que é uma das marcas das redes sociais, do género “Eu não li esse livro, mas é isto e aquilo e aqueloutro, porque eu vi isso num tweet ou numa mensagem com centenas de milhares de visualizações ou numa influencer que sigo.” Ou num programa cómico… que substitui o debate político nas redes sociais.

Pensam que muito do que eu disse é uma teoria da conspiração? Olhem que não. Pode haver algum exagero pedagógico, até porque hoje estes mecanismos funcionam também espontaneamente, porque muita gente já não sabe viver doutra maneira na sua relação com o espaço público, que é mais um espelho do que já se é do que alguma coisa que se sabe ou vem a saber, alguma informação que não tínhamos ou que nos podia fazer apreender ou fazer pensar. Este é um mundo narcisista e muito preguiçoso e é péssimo para os dias que vivemos, com a democracia fragilizada e em risco mesmo, tal como as nossas segurança e liberdade. Se querem aquecer os nervos com alguma coisa séria e não com este fluxo de banalidades excitadas, olhem para fora do telemóvel.»

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