22.2.24

As sete vidas de Pedro Nuno Santos

 


«1. O debate tinha acabado de começar e, entre a perturbação da gritaria policial e a ansiedade criada pelo “combate decisivo”, não foi fácil perceber de imediato que Pedro Nuno Santos mudou a trajectória da campanha eleitoral ao dizer que nem iria pedir a rejeição de um governo minoritário da AD, nem votaria favoravelmente qualquer rejeição apresentada por outro partido. Com duas simples frases reequilibrou a favor do PS os danos morais do prometido chumbo ao governo dos Açores, onde o PSD precisa do Chega para formar maioria; deu ao país um sinal de humildade democrática; fez prova de que o seu partido tem um compromisso com a estabilidade e a governabilidade; e, perante um Luís Montenegro aturdido, em silêncio com a ousadia e surpresa da novidade, colou à AD um selo de intransigência que lhe abre um problema junto do eleitorado moderado.

Chegámos assim a um momento notável no arraial que a polarização criou no sistema político e partidário: um líder que apenas promete ficar quieto, sem nada fazer a favor ou contra um governo acabado de eleger com uma maioria simples, destacou-se e merece ser elogiado. A procura da estabilidade e previsibilidade, um gesto banal à luz do senso comum, tornou-se um feito. Determinou o rumo de um debate. Instalou-se no centro da campanha. Com as economias europeias a abrandar, duas guerras à porta, uma dúvida existencial sobre o futuro da noção de Ocidente e uma crescente ameaça da extrema-direita, os líderes dos partidos de poder pareciam querer ser como meninos mimados a discutir o dono da bola. Pedro Nuno Santos quebrou esse incómodo que foi crescendo com a pré-campanha e dominou os debates. O líder do PS desatou o nó no tal “debate decisivo” e colou ao seu adversário o selo do radicalismo e da intransigência.

Doravante, de cada vez que Luís Montenegro aparecer num evento de rua os jornalistas vão perguntar-lhe o que fará se o PS ganhar as eleições sem maioria absoluta. Como acontecera antes do “não é não” ao Chega, a sua agenda está condicionada. Caso persista em nada dizer ou insista em dizer que não viabilizará uma vitória minoritária do PS, ficará amarrado a uma noção destrutiva digna do bota-abaixo e enterrará a ideia do compromisso que sustenta as democracias liberais. Com o ónus da falta de soluções para a estabilidade nos braços, o PS explora o vazio e dá-se ao luxo de recuperar o fantasma estafado da associação com o Chega. Montenegro foi ultrapassado a toda a velocidade por Pedro Nuno Santos, mas pode ainda recuperar e dizer que sim, que não deixará o país sem rumo, se o PS ganhar com minoria. Andará a reboque, mas pior será deixar pairar sobre si a imagem do líder arrogante que se recusa a aceitar que, no actual contexto, o pior que pode acontecer ao país é prolongar a crise política.

Porque a questão essencial para se discutir o cenário pós-eleitoral não deve ser medida pelo que se diz e ouve nos fóruns dos militantes: deve procurar-se no que sentem e pensam as pessoas comuns. Para eles, que detestam eleições e penalizam com o seu voto quem se atreve a desencadear crises políticas, o principal dever dos políticos é resolver os problemas. Para eles, o pior que pode acontecer é chegarmos a 10 de Março sem horizontes seguros. Há uma crise, entendam-se. O receio de um impasse ou de um imbróglio que paralisa o país é intolerável. Se alguém diz à partida que chumbará incondicionalmente o governo do adversário faz politiquice, não política com sentido de Estado e de dever. Esperar para ver o Orçamento antes de dizer que se aprova ou chumba, como fez Pedro Nuno Santos, é tolerável; admitir deitar abaixo o governo só por ser dos socialistas é algo que nenhum cidadão moderado e preocupado consegue aceitar.

2. Foi principalmente por ter ficado nessa posição, e também por ter percebido que Pedro Nuno Santos revelara um mais agudo sentido de Estado ao condenar a tentativa de “coacção” que a manifestação dos polícias evidenciava, que Luís Montenegro perdeu a compostura no debate. Ganhou pontos no debate em torno da Saúde, da Educação ou da Habitação – mas estava já no terreno minado pelo seu adversário. Na grande pergunta das legislativas, Pedro Nuno Santos tinha uma resposta e ele não tinha. Se há uma explicação para o facto de a maioria dos analistas ter considerado que Montenegro estivera medíocre no debate, ela está nessa incapacidade de anular o golpe de surpresa que o seu opositor preparara. O que distingue os grandes líderes é a sua capacidade de reagir em momentos de pressão.

Chega-se assim ao momento paradoxal da campanha, em que o líder supostamente obtuso se revela flexível e o líder supostamente moderado se converte em ortodoxo. Em que o herdeiro de um governo com dificuldade em explicar os sinais de crise do SNS, os dramas da Educação ou a inércia na política de Habitação pública resiste e o líder com uma folha em branco é incapaz de explorar as suas vulnerabilidades. No final do dia, esse é o grande acontecimento que torna o PS e Pedro Nuno Santos em casos de estudo da política: dificilmente um governo com oito anos de desgaste, com tantas falhas, com tantas causas para gerar descontentamento se salva assim; dificilmente um candidato com tantas e tão profundas “cicatrizes” como o líder do PS foi capaz de dispor de sete vidas para chegar até hoje com poder para disputar ombro a ombro uma vitória eleitoral.

Nada está decidido, é certo. Ainda há semanas de campanha e, muito provavelmente, outros casos, outros erros, outras dúvidas se acumularão para tornar o debate desta segunda-feira em apenas mais um momento de um tempo louco na política portuguesa. Mas esse momento há-de ter deixado um pequeno lastro para o que está para vir. Ao baralhar e dar de novo muitos dos conceitos e preconceitos sobre perfis de liderança, sobre competências, sobre capacidades de reagir a quente dos dois líderes, o debate deve ter bastado para esclarecer ao menos alguns indecisos. Não sendo justo dizer que no confronto houve um vencedor inequívoco, ao menos reconheça-se o essencial: Pedro Nuno Santos saiu do plano inclinado em que se encontrava à custa da assertividade e da ousadia em arriscar; e Luís Montenegro regressou à ciclotimia que ora o faz parecer um líder, ora o remete para uma silhueta anódina, que nunca aparece quando deve aparecer.»

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