23.2.24

O projeto político da desordem

 


«Nenhum dos candidatos que estava no Capitólio sabia que os polícias iriam transformar a manifestação do Terreiro do Paço num cerco simbólico ao debate democrático. Não houve media training, houve instinto político. Os dois revelaram os seus defeitos e virtudes, sempre ligados: um decidiu sozinho, sem grande cálculo político, segundo as suas convicções; outro tentou agradar a todos, hesitando perante o risco. Pedro Nuno Santos entrou no debate a vencer porque percebeu que se candidata a exercer a autoridade do Estado. E a exercê-la, antes de mais, junto dos agentes que, em nome do Estado, garantem o cumprimento da lei, não a podendo violar, muito menos de forma coletiva. Num candidato a primeiro-ministro também avaliamos a capacidade política em momentos de pressão.

Muitos ficaram espantados por ser o candidato da esquerda a defender a ordem. Eu não. Porque a direita mudou. Não o escrevo com nostalgia. Houve um tempo que via as greves como sabotagem e os funcionários públicos como privilegiados. Duas coisas mudaram o seu discurso: a degradação das funções do Estado, em linha com o desmantelamento do modelo social europeu, dando espaço ao ressentimento nos seus servidores, e a decadência do sindicalismo, dando espaço a movimentos menos institucionalizados, onde a direita, sobretudo a mais radical, tem facilidade em entrar. O primeiro exemplo foi nos enfermeiros, em que uma ordem profissional conseguiu, através de paragens cirúrgicas financiadas pela recolha geral de fundos, quase paralisar o SNS, numa violação da “ética da luta” de que o sindicalismo é tributário.

Dos agricultores à polícia, passando por médicos, professores ou enfermeiros, assistimos a um fenómeno de desinstitucionalização dos conflitos políticos e sociais. Movimentos supostamente inorgânicos e espontâneos arrastam sindicatos e confederações para becos sem saída. Sem lideranças claras, não têm capacidade de negociar, pôr fim a uma luta ou serem responsabilizados pelos seus erros. Na luta laboral, serve para enfraquecer a capacidade coletiva dos trabalhadores. A manipulação política é tão fácil como, no meio de um tumulto, criar o caos sem se perceber de onde partiu a primeira pedra. Ou levar milhares de alienados a ocupar o Capitólio, em Washington, ou o Palácio do Planalto, em Brasília. Se tentarmos saber quem direcionou os polícias para o Capitólio (o do Parque Mayer), é provável que os participantes julguem que o fizeram “espontaneamente”. A manipulação política é tanto mais fácil quanto menos organizado for o movimento. E ela é especialmente evidente neste caso. Sendo o ganho de oportunidade nulo perante um Governo em gestão, o ganho político é brutal, desgastando, em campanha, os dois partidos a quem o Chega quer roubar votos. Basta usar o justo descontentamento dos polícias. Os sindicatos fazem coisas destas? Fazem. Mas os trabalhadores conseguem identificar os autores e, assim, as suas motivações.

No essencial, os polícias têm razão. O suplemento de missão na PJ alimentou um sentimento de injustiça relativa. Apesar de a equiparação ser abusiva, não devia ter avançado sem uma revisão geral das remunerações. Mas o que se está a passar não se explica exclusivamente com a degradação das condições na Função Pública. Há um problema de disciplina nas forças de segurança como há um problema de recato na justiça, de credibilidade no jornalismo, e podia continuar por aí adiante, parecendo que estou a anunciar o fim dos tempos quando estou, na realidade, a anun¬ciar o fim de uma sociedade mediada por códigos, representantes e poderes públicos reconhecidos. A substituição de formas de mediação verticais por formas de comunicação horizontais criou um problema geral de autoridade política. Na polícia, isto tem sido aproveitado pela extrema-direita — primeiro o Movimento Zero, agora o Inop —, que segue a tática de sempre: alimentar a desordem para exigir a ordem. É curioso, aliás, que sejam os que defendem a brutalidade à mínima transgressão de qualquer grupo socialmente estigmatizado a defender o direito de quem impõe a lei a violá-la. Assim como são os “patriotas” brasileiros e norte-americanos a ofender de forma mais grotesca os símbolos nacionais.

A institucionalização do conflito laboral é, nos termos que hoje conhecemos, uma conquista do movimento operário, sobretudo da sua componente reformista. Ela inclui o sindicalismo e o direito à greve. É por isso que, tendo defendido o direito à sindicalização dos polícias (boicotada com a criação de 18 sindicatos), também defendo o direito à greve, com garantias de serviços mínimos, como nos médicos. Sou contra uma GNR militarizada e quero a luta de uma função civil institucionalizada. A minha posição é, como a de boa parte da esquerda contemporânea, conservadora: conservar uma conquista que deu muito melhores resultados do que esta balbúrdia falsamente espontânea e uma ordem democrática em crise. Já a direita, na sua tolerância com o que vimos no Capitólio, está a ser sugada para o projeto político da desordem. Que corresponde, na verdade, à nova ordem neoliberal.»

.

0 comments: