«Os franceses mobilizaram-se. E, desta vez, não se mobilizaram pelo mal menor. Emmanuel Macron decidiu, para impedir a construção de qualquer alternativa à extrema-direita que não passasse por ele, atirar a França para o caos político. O oportunismo que marcou toda sua carreira tem sido visível para todos os europeus, quando passou da defesa da negociação com Putin para a defesa de tropas francesas na Ucrânia, sempre ao sabor de necessidades políticas internas. Repetiu-se, neste caso. E correu mal, como muitos avisaram.
Neoliberal autoritário, Macron trabalhou para destruir todo o sistema partidário, criou uma força política em torno sua pessoa e impôs mudanças económicas e sociais radicais por decreto, passando sobre o parlamento. Mesmo a marcação destas eleições para três semanas depois para impedir a oposição de se preparar é democraticidade discutível. Macron não foi, durante estes anos, defensor da democracia francesa. Degradou-a e encaminhou-a para uma tragédia há muito anunciada. Agigantou a extrema-direita para ele ser o voto inevitável. Um dia aconteceria a extrema-direita chegar a esta votação e a alternativa deixar de ser ele. Foi ontem.
O sistema eleitoral francês, construído para favorecer o centro, tem duas voltas. Passa à segunda quem tiver mais de 12,5%. Os confrontos triangulares, envolvendo três partidos, levaram, noutras eleições, o centro-direita neoliberal a pedir concentração de votos contra a extrema-direita, através da desistência de candidatos de esquerda que ficassem em terceiro. No passado, a esquerda garantiu esta união de forças e voltou a fazê-lo agora, anunciando a desistência para candidatos democráticos sempre que não esteja em primeiro ou segundo lugar. Objetivo: vencer a extrema-direita.
Haverá reciprocidade? Da velha direita conservadora, sabe-se a quem darão a mão. E do chamado “centro” macronista?
Antes das eleições, Emmanuel Macron deixou de falar da frente contra a extrema-direita, passando a falar de uma frente contra dois extremos, que foi equiparando. Sendo que na Nova Frente Popular (NFP) estão os socialistas e os verdes e tem como um dos candidatos “radicais” François Hollande. A equiparação é insultuosa, mas, para os neoliberais, a democracia esgota-se nas suas propostas económicas. As que estenderam a passadeira vermelha a Marine Le Pen.
Sabendo que só entendimentos com a esquerda podem impedir que o centrão presidencial seja esmagado, o partido de Macron anunciou que desistirá para os candidatos na NFP onde estes tenham ficado nos dois primeiros lugares, contra a RN. Já o tinha feito ao votar em Macron e Chirac, que representavam quase tudo o que a esquerda combate. E fizeram-no nas sucessivas legislativas. Porque havia um valor superior a defender. Não fiquei seguro que assim será para boa parte dos macronistas.
Dentro do bloco presidencial, não é claro se essa desistência também aconteçará quando os candidatos da NFP sejam da França Insubmissa – e eles são a maioria dos candidatos de esquerda que passou à segunda volta. Dentro desse bloco, o Horizons, do ex-primeiro-ministro Édouard Philippe, teve esta posição irresponsável. A do Renaissance, principal força da coligação “Ensemble pour la République”, não ficou clara. Pelo contrário, ao ver a televisão francesa, fui ficando crescentemente preocupado.
O primeiro-ministro Gabriel Attal disse que era preciso fazer tudo para travar a maioria absoluta da União Nacional (RN). Não ficou claro se era mesmo tudo. E, no entanto, só a reciprocidade total pode impedir uma maioria absoluta da extrema-direita, de que ela está muito próxima. Se o empenho não for total, será a primeira vez que a extrema-direita chega ao poder pelo voto, em França. Um terramoto para a Europa.
Do lado da esquerda, espera-se a noção do momento histórico que a França e a Europa estão a viver. Valerá tudo e a acusação de antissemitismo, quando a NFP tem forte apoio entre muçulmanos e a Palestina está em debate, será a arma que os herdeiros de Vichy usarão. Contra isso, pouco se pode fazer contra os apoiantes do genocídio em Gaza – colaborar com genocídios faz parte da tradição da extrema-direita francesa.
Outra coisa é a candidatura para primeiro-ministro. Jean-Luc Mélenchon é o responsável pela recuperação da esquerda francesa, quando os socialistas estavam próximos da morte. Mas também tem dificuldade em ultrapassar os limites da votação da NFP na primeira volta. Durante a campanha, deixou que se especulasse a possibilidade de ser ele o nome da esquerda para liderar o governo. Seria bom esclarecê-lo durante esta semana.
Este é o tempo para a frente de esquerda ajudar a desequilibrar a balança e tentar vencer os herdeiros do pior da história francesa e europeia, agora liderada por um jovem que em nada acredita. E que tentará, com a ajuda de alguns falsos moderados e de muitos poderes fácticos, fazer o que Meloni fez: normalizar-se. Porque mais vale um racista e xenófobo do que travar a caminhada neoliberal.»
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