2.7.24

O suicídio assistido da França

 

@Miguel Medina

«Emmanuel Macron dramatizou a derrota nas eleições europeias e exigiu aos franceses uma clarificação: ou ele ou Marine Le Pen. O que os franceses lhe responderam neste domingo, na primeira volta das eleições legislativas antecipadas, foi a repetição do que tinham dito a 9 de Maio. O mais jovem presidente do país vai deixar o Eliseu sem a pompa e a circunstância com que entrou. O seu tempo está a chegar ao fim.

Ironicamente, o homem que queria acabar com o obsoletismo das categorias ideológicas assiste ao funeral do centro político onde se situou. Macron queria acabar com a esquerda e a direita, mas serão a esquerda e a direita a acabar com o que restar do macronismo. O presidente que queria sobrepor à dicotomia ideológica a dicotomia entre europeístas e soberanistas, entre um modelo de sociedade economicamente aberta e o proteccionismo, foi rejeitado por uma população que deixou de se rever em alguém como ele.

O presidente entrou no Eliseu com uma aura de vitória, sem ter percorrido o trajecto habitual dos políticos, não tinha concorrido sequer a nenhuma eleição anteriormente. Os franceses rejeitam-no porque ele se tornou numa entidade distante, pertencente a uma casta social inatingível, que exibia a sua arrogância sem embaraços: chegou a sugerir que quem não tinha um Rolex depois dos 50 anos era um falhado.

Ao dissolver a Assembleia Nacional na noite das europeias, e ao convocar eleições antecipadas, o presidente francês alienou parte do seu campo político, surpreendido e desgostoso com a decisão. Nenhuma das principais figuras do seu campo político o apoiou numa decisão que pode levar o partido de extrema-direita ao poder. Edouard Philippe, um dos seus ex-primeiros-ministros, disse que o presidente “tinha matado a maioria” e que era “altura de seguir em frente”, para além do macronismo. Candidatos alinhados com Macron evitaram colocar a fotografia do presidente nos seus cartazes de campanha, para não se associarem à sua impopularidade.

Mas houve outro erro de cálculo mais funesto: Macron não estaria a contar com a rapidez com que partidos de uma esquerda sempre quizilenta conseguiriam ultrapassar o que os dividia e constituir em tempo recorde uma Nova Frente Popular (NFP), inspirada na de 1934.

Os dirigentes dos partidos socialista, comunista, ecologista e da França Insubmissa formaram a coligação num dia e dispuseram de pouco tempo de campanha. Definiram os alvos em comum e esqueceram as profundas divisões, particularmente notórias se falarmos de política externa. Os alvos eram dois: o lepenismo e o macronismo. O resultado foi este: a pergunta deixou de ser Macron ou Le Pen para passar a ser Le Pen ou Jean-Luc Mélenchon?

A coligação vai manter-se estável até domingo. Depois disso, tudo é possível. Em caso de vitória da NFP, na ausência de um critério conhecido, não é líquido quem seja o primeiro-ministro. Mélenchon não recusaria sê-lo. O PS de Raphaël Glucksmann tenta encontrar uma figura consensual e François Hollande, o ex-presidente socialista, fará tudo para que não seja o líder da França Insubmissa.

Hollande foi eleito à primeira volta para a Assembleia Nacional e pode ser que o seu regresso à frente de combate político não se fique por aqui. Voltar ao Eliseu em 2027 era a melhor revanche para alguém que ficou na história do país por ter exercido apenas um mandato e que foi substituído por um antigo ministro das Finanças de um governo seu.

A União Nacional (UN) teve mais tempo para se preparar para chegar até aqui. O objectivo é o Palácio de Matignon daqui a uma semana e o Eliseu em 2027. Jordan Bardella no primeiro, Marine de Le Pen no segundo. Os Republicanos, divididos numa luta fratricida, serão um apoio importante para uma maioria absoluta da UN. Os Republicanos de Charles de Gaulle vão entregar-se à agenda de um partido racista, xenófobo, que substituiu o anti-semitismo pela islamofobia por oportunismo político, assim como colocou em suspenso a sua eurofobia. É a vez de Éric Ciotti demonstrar o seu oportunismo.

A estratégia resultou. Bardella, aos 28 anos, parece um jovem Jacques Chirac, no corte dos fatos e no penteado curto e rente. A UN é um partido de todos, de quem perdeu poder de compra, de quem aplaude as reportagens que o Canal 8 faz quando acompanha a polícia na caça deplorável a imigrantes indocumentados. Como se viu na noite eleitoral, tenta agora diabolizar a Nova Frente Popular, sobretudo Mélenchon, e assustar o eleitorado.

Macron percebeu tarde de mais o erro da sua decisão prematura. Chegou a publicar na imprensa regional uma carta na qual reconhecia que era necessário governar de outra forma. Tarde de mais. Ninguém quis saber do seu arrependimento. O princípio é simples: tudo menos Macron.»


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