«Há temas a que volto sempre porque, como nada muda, mais vale continuar a malhar no ferro frio. Na verdade, ele nunca se molda, mas pelo menos fica o som e o prazer da marretada.
No dia em que escrevo, Portugal prepara-se para parar às 20 horas. Como há sempre meia dúzia de resistentes, eu vou estar a inaugurar uma exposição e a falar sobre liberdade e o 25 de Abril, coisas já gastas e sem novidade, no Teatro de Almada, uma hora antes de o país parar. Não sei se vai aparecer alguma gente, e qual vai ser o desfecho do destino da Pátria, mais uma vez em luta contra os franceses, desta vez sob a sombra de Madame Marine Le Pen. Quando me lerem já sabem tudo, mas na verdade a parte que vão saber é bastante irrelevante, a não ser como espelho dos maus costumes nacionais. Em 15 dias, se perdermos, está tudo esquecido e nesses 15 dias haverá um surto de logomaquia infeliz, acusatória, vingativa, depressiva e deprimida, porque mais uma vez a Pátria na versão Ronaldo não esteve à altura dos seus Maiores. Se ganharmos, rufarão mais tambores do que portugueses e a bandeira, que só serve para estas coisas, estará por todo o lado, nas casas, nas lapelas, pintada na cara de uns e umas, que estarão aos saltos por essa Europa fora. Ridículo visto de cima, não é? Mas é este o nosso único sobressalto patriótico, o dos nossos Menores. Os patriotas do futebol querem lá saber.
O patriotismo de pacotilha à volta do futebol não existe apenas em Portugal, mas coexiste com outros restos de história mais vivos, para o bem e para o mal, na França, no Reino Unido, em Espanha. Quase sempre hoje para o mal, como se vê na empáfia francesa que vota em massa nos herdeiros dos colaboracionistas da II Guerra Mundial, e nos saudosistas da Argélia Francesa. Por cá, é que é só no futebol, e, ocasionalmente, na nostalgia do Império com os brasões das colónias a murchar e a esfera armilar, que o nosso Governo restituiu com orgulho no meio das cores jacobinas. Do resto os patriotas do futebol querem lá saber.
Talvez precisássemos de algum patriotismo para ter dado por ela que, sem qualquer consulta popular, entregámos a soberania financeira, ou seja, quase tudo das opções fundamentais da governação, a Bruxelas, sem qualquer sobressalto. Os patriotas do futebol querem lá saber. E, no ano em que comemoramos um dos raros génios nacionais, Camões, continuamos indiferentes aos estragos que a nossa língua teve com o Acordo Ortográfico, que, para além do enorme desastre diplomático, só continua em vigor por pura inércia. Essa inércia é o retrato do patriotismo das nossas elites políticas, que estão todas a “reler” Os Maias, quando perguntadas sobre o que estão a ler, e que vão agora durante um ano buscar à Wikipédia umas frases de Camões, para parecer que ainda lhes importa a língua, que ajudam a matar na sua ortografia todos os dias. Os patriotas do futebol querem lá saber.
Precisamos de muito mais do bom, genuíno, culto, sentimental, fundador patriotismo. É que somos portugueses e, por muito que não se queira, é o que nós somos, qualidades e defeitos. Uma língua magnífica, uma literatura que, sem se conhecer minimamente, não se é culto, nem nos EUA, nem na China, nem na Polónia, nem obviamente em Portugal. Uma história que faz parte da história universal em certos séculos e noutros é irrelevante, é como a do Tuvalu, e que devíamos conhecer melhor sem excitações de glória – a história não casa bem em nenhum sítio com a palavra “glória” – mas como fazendo-nos, querendo ou não, “portugueses”. E habitamos uma “casa” antiga, dois fragmentos do velho império romano, um a norte que vai à missa e outro a sul que é “terra de missão”, cujas fronteiras conhecemos bem, mar de um lado, Espanha do outro. O mar é impiedoso, “mar cão”, e do lado de lá a tentação do “nem bom vento, nem bom casamento”, bastando olhar para o mapa da Península para se ter cuidado com os políticos, mas não com o grande Quixote, nem o Lorca, nem o Unamuno. E cá por dentro, onde a pátria tem falhado acima de tudo aos portugueses, e onde todas as perversões da desigualdade, da pobreza existem há tempo demais. É verdade, mas com uma democracia que deve tudo até agora, insisto, até agora, à força enorme da liberdade do 25 de Abril. Vamos ver se dura e como dura.
Os patriotas do futebol querem lá saber disto tudo.»
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