4.7.24

Se não se pode repetir 1987, as circunstâncias estão erradas

 


«Cavaco Silva escreveu mais um artigo, mas eu não vou tratar de mais um texto de Cavaco Silva. É um texto “pedagógico”, claro. Para explicar às massas ignaras o que deve fazer o país para dar um salto nos próximos 10 anos, não menos do que isso. No essencial, são generalidades bem-intencionadas que poderiam ser repetidas num discurso de Miss Mundo, com passagem pelo ISEG. Cavaco nunca governou com euro e as suas regras, nunca governou com uma Europa de 28, nunca governou com qualquer tipo de contrariedade ou constrangimento sérios.

A parte económica do artigo tem como função falar do que realmente o levou a escrever o artigo: tática partidária. No essencial, o que Cavaco tinha para dizer é que os únicos cenários políticos que tornam o salto económico provável implicam novas eleições. Confirmamos que foi por conselho seu que se definiu a estratégia de tentar repetir 1987: ir esticando a corda para ir a votos enquanto sobra dinheiro e estado de graça, responsabilizando o PS, o Chega ou os dois pela crise política e tentando conseguir uma maioria. Não é preciso fazer interpretação dos atos do primeiro-ministro, foram fontes da AD a colocarem na imprensa esta tese, talvez para condicionar o PS.

Cavaco Silva tem tão boa opinião de si mesmo que não põe a possibilidade do que fez não ser repetível. Se ele foi o melhor estadista desde a fundação de Portugal, se o país lhe deve quase tudo, se nunca se engana, raramente tem dúvidas e é preciso nascer duas vezes para ser mais sério do que ele, como raio poderiam novas circunstâncias pôr em causa a sua estratégia? Se as circunstâncias o impedem, as circunstâncias estão erradas.

Vou, no entanto, pôr uma possibilidade meramente académica: que, sendo o fenómeno do Chega muito diferente do PRD, as condições para fazer este jogo sejam muito diferentes. Pode até acontecer que Montenegro, que seguiu o conselho de falar pouco e negociar nada, lançar muito fogo de artificio e trabalhar para eleições no fim do ano, tenha perebido que as eleições europeias, que deixaram quase tudo na mesma apesar do estado de graça e do embalo da vitória nas legislativas, desaconselham aventuras. É até possível que a tenha percebido que a estratégia que António Costa usou com os partidos à esquerda do PS (o abraço do urso) seja a mais acertado. Se assim foi, nunca convencerá o seu mestre. A subtileza política é incompreensível para ele.

Cavaco Silva tem 84 anos. É natural que não compreenda um fenómeno tão disruptivo como esta nova extrema-direita, que chegou ao parlamento português já ele estava retirado. Mas falta-lhe a humildade que lhe permitiria ter dúvidas perante um novo e estranho mundo. E falta-lhe, sempre lhe faltou, generosidade para com os seus próprios pupilos. Não aguenta não deixar claro a todo o país que é ele a dar a tática a quem lhe pediu apoio. Mesmo quando isso expõe o seu partido à suspeita de desejar uma crise política. A partir deste artigo, passou a ser fácil perguntar a Montenegro: quer governar ou seguir a tática do mestre?»


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