21.9.24

Sabe onde acaba a roupa que devolve online?

 


«Há 20 anos, uma amiga de Nova Iorque disse-me que não tinha tempo para comprar roupa, tinha dois filhos pequenos e alguns países saídos de guerras civis para ajudar.

— Porque é que vou perder tempo a ir a lojas se posso encomendar vários tamanhos e várias cores online e devolver o que não quero?

Agora, outra amiga de Nova Iorque marcou viagem para Lisboa e, porque gosta muito de uma marca de roupa francesa que não se vende nos EUA, foi ao site francês e encomendou várias coisas para entrega em Lisboa. As taxas alfandegárias que os EUA cobram aos bens importados da Europa são altas, transacções que, no mercado europeu, custam zero euros.

Primeiro veio a caixa, enorme; semanas depois, a amiga. Chegou, abriu a encomenda, tirou os cartões que fazem de chumaços para acomodar as peças, tirou as folhas de papel de seda, tirou os sacos de plástico e, mal viu a roupa, fez má cara.

Nada era como tinha imaginado. Nem os tamanhos — e ela encomendou mais do que um para a mesma peça —, nem os cortes, nem as cores. O que parecia bonito no site era afinal largueirão, sensaborão, deselegante. Torceu o nariz e foi experimentar.

Passados nem dez minutos, estava de volta. Não valia a pena. Estava tudo mal. No dia seguinte, foi aos correios e devolveu tudo para França.

Disse a minha amiga, que trabalha com mercados e comércio internacional há 30 anos:

— Que estupidez. Caixas e sacos e roupa de um lado para o outro para nada. O que vale é que a devolução é grátis.

Mas não é “para nada” e só é gratuito para o cliente. É mau para o planeta e para as empresas.

É conhecida a história de Aparna Mehta, que acaba de se reformar como vice-presidente do departamento de Global Customer Solutions da UPS, que, do escritório em Anaheim, na Califórnia, trabalhou durante anos no desenvolvimento de “soluções inovadoras e tecnológicas” de logística.

É conhecida porque, tendo percebido que estava viciada em compras online, e sabendo um pouco sobre o mundo da logística, ficou horrorizada ao descobrir o que acontece às devoluções. E fez um TED Talk que começa assim:

— Olá, o meu nome é Aparna e era viciada em devoluções online.

Podia aqui falar dos números impressionantes do desperdício da indústria da moda: os seus 10% das emissões mundiais de gases com efeito de estufa; os 20% da poluição das águas residuais industriais; os 2700 litros de água necessários para fazer uma T-shirt de algodão; os 57% da roupa deitada fora que vai para aterros.

  • Mas não é sobre isso que Aparna Mehta fala. Ela não quer mudar a indústria mundial da moda. Tem uma ambição mais modesta: mudar o hábito de comprar a mais para devolver. Só nos EUA, 40% dos clientes online compram vários tamanhos do mesmo artigo com a intenção de devolver alguns.

Há cálculos que indicam que o custo do dióxido de carbono das devoluções nos EUA é equivalente à produção de três milhões de carros.

O teaser do seu TED Talk diz: “Já alguma vez encomendou roupa online em tamanhos e cores diferentes, só para a experimentar, e depois devolver o que não serve? Aparna Mehta estava sempre a fazer isso, até que um dia se perguntou: para onde vão todas estas roupas devolvidas?”

Uma das respostas é: para o Chile. As montanhas de roupa no Chile chegaram a ser tão grandes que eram captadas com clareza por imagens de satélite. Em 2022, teriam entre 11 e 59 toneladas.

A denúncia apareceu originalmente no site do Grist, organização de media independente “dedicada a contar histórias de soluções climáticas e futuro justo”, e este ano a reportagem foi co-publicada no diário El País e na revista Wired, como parte da Climate Desk, uma colaboração jornalística multimédia internacional com dezenas de parceiros, como o Guardian, a Yale Environment 360 e o Bulletin of the Atomic Scientists.

Há anos que as roupas são amontoadas no deserto de Atacama, 1600 quilómetros a norte de Santiago do Chile, conhecido por ser uma das regiões mais áridas do planeta e por ser um “deserto florido”. Quando chove muito, o que é raro, grandes áreas do deserto ficam subitamente cobertas por um tapete de flores roxas e amarelas, de entre 200 espécies de plantas que florescem, um fenómeno natural ligado a sementes dormentes que conseguem ficar anos à espera de chuva sem morrer.

Na reportagem do Grist, li que ninguém sabe quanta roupa passa por ano pelo porto de Iquique, mas são muitas toneladas. Os contentores vão para a zona franca de Zofri, onde estão os armazéns de 50 importadores de roupa usada. “O Chile é o maior importador de roupa usada da América do Sul e, entre 2020 e 2021, foi o importador de roupa usada que mais cresceu no mundo.” Segundo o grupo global de defesa do ambiente Eko, 85% da roupa usada importada para Iquique não é vendida.

Para onde vai? Isso: para o deserto de Atacama.

Continuei a ler: nos últimos 20 anos, a produção mundial de roupa duplicou, ao mesmo tempo que o número de vezes que uma peça de roupa é usada antes de ser deitada fora diminuiu 36%. “Países como o Chile, o Haiti e o Uganda tornaram-se repositórios de restos da fast fashion. Só em 2021, o Chile importou mais de 700 mil toneladas de roupa nova e usada, o peso equivalente a 70 torres Eiffel.”

O jornal online Quartz, que escreve sobre grandes empresas, negócios, tecnologia e inovação, publicou em 2016 uma notícia cujo título era “Os presentes devolvidos estão a criar um desastre ambiental”.

Diz o jornal que “muitas devoluções não voltam para o inventário das lojas e para as prateleiras”. O que acontece? “Aumentam a pegada de carbono à medida que percorrem uma rede de intermediários e revendedores. A cada passo, uma parte desses bens será descartada em aterros sanitários.”

Ou em montanhas ilegais no deserto de Atacama, no Haiti, Uganda, Quénia e Gana. Só ao mercado de roupa em segunda mão de Acra, no Gana, chegam por semana 20 milhões de peças com origem no Ocidente — 40% saem do mercado como lixo e vão para baldios.

Já percebeu como isto acaba: muitas roupas são encontradas ainda com as etiquetes do preço. Nunca foram usadas. São as nossas roupas devolvidas.»


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