9.1.25

A submissão a Trump

 


«Ainda antes de tomar posse, Donald Trump anunciou que quer recuperar o Canal do Panamá, convida o Canadá a ser um estado dos EUA e exige que a Dinamarca lhe entregue a Gronelândia. Se Putin dissesse coisas como estas (dizem os seus apoiantes) estaríamos a reforçar as nossas defesas. Para quem pense ser mais um delírio, o filho fez uma visita ao território, porque gosta de natureza.

Claro que Trump não precisará de tropas. Há décadas que os gronelandeses pedem a sua independência e ela será provavelmente acelerada. Os independentistas são de esquerda – a deputada pró-independência no parlamento dinamarquês, Aaja Chemnitz, disse que a Gronelândia não é "uma peça no tabuleiro dos sonhos loucos de Trump" –, mas Trump tem instrumentos para persuadir as 56 mil almas que vivem num território militarmente estratégico, de passagem marítima preferencial com o degelo e com enorme quantidade de “terras raras” necessárias às tecnologias.

Quando o líder da maior potência do mundo ameaça intervir militarmente num território de um suposto aliado, membro da NATO, rimos. Porque tudo ainda nos parece demasiado irreal para não ser uma piada. Não é. Já o deveríamos ter percebido. O 6 de janeiro parecia impossível e aconteceu. Depois dele, este narcisista perigoso e eficaz conseguiu tudo o que queria. Nunca um político teve tanto poder. Vergou o partido republicano e tem o Senado e a Câmara de Representantes na mão, recebeu do Supremo que ele próprio moldou o salvo-conduto para a impunidade e tem ao seu lado, como aliados ou súbditos, a meia dúzia de homens que controla a forma como a esmagadora maioria do mundo se informa, a que se juntará a Inteligência Artificial. Foi ele que escreveu: “toda a gente quer ser minha amiga”.

A partir de uma tenebrosa história de abusos sexuais em massa de menores (que levantou questões em torno da comunidade de origem paquistanesa) no Reino Unido, desenterrada pela GBNews e Farage, Elon Musk conseguiu convencer milhões de pessoas que um escândalo com 14 anos tinha sido escondido dos mesmos que partilham manchetes com mais de uma década como se fossem de hoje e debatem um relatório de 2022 que só existe porque o caso não foi, de facto, escondido. O segredo não é apenas mentir, é ter o poder de manipular o timing e a agenda e fazer parecer novo o que é velho, obscuro o que era sabido, para provocar, 14 anos depois, os efeitos políticos que o presente não oferece.

O objetivo é fazer cair governos e dar força à extrema-direita. Como está a tentar no Reino Unido, na Alemanha e na Áustria e tentará em França. O problema não é Musk perguntar ao seu rebanho se os EUA devem libertar o Reino Unido da tirania. As suas opiniões desinformadas não são uma interferência na política britânica ou alemã porque, ao contrário de Trump, ele não é chefe de Estado. O problema é usar o algoritmo da rede que comprou para desenterrar o ódio no Reino Unido ou fazer crescer a AfD. O problema não é a sua palavra, é um poder opaco, insindicável e maior do que qualquer órgão de comunicação social que possa ser responsabilizado pelo que publica.

Falar de liberdade de expressão quando milionários determinam as regras de quem é ouvido ou atirado para a obscuridade das redes, usando o algoritmo para moldar o debate aos seus interesses comerciais, é não ter aprendido nada com a última década. Dirão: é o que a comunicação social faz. Acontece que, além das regras escritas, ela é criminalmente responsabilizável por tudo o que publica. Estas plataformas, fingindo serem meras distribuidoras, não o tem sido.

Se Musk foi à frente, os restantes têm de lhe seguir o caminho para terem os favores do poder, porque é dos seus negócios, não de liberdade, que tratam. Mark Zuckerberg pôs fim às já muitíssimo frágeis regras de moderação no Facebook e Instagram, copiando a rede X e assumindo, sem rodeios, que isto era consequência das últimas eleições. Para deixar clara a sua submissão, chamou para a administração da empresa Dana White, ex-pugilista que comprou a a liga MMA e que tem uma conhecida, forte e antiga ligação pessoal, empresarial e política a Trump. E há quem acredite que quem se verga de forma tão explícita e humilhante a um novo governo quer defender a liberdade. Quer tanto como Jeff Bezos, que ficou com os restos e se entretém a censurar o “The Washington Post”.

Numa situação económica precária, com a França e a Alemanha a consumirem-se em crises políticas e uma Comissão Europeia a quem quase ninguém reconhece autoridade democrática, o gigante com pés de barro em que vivemos está pronto a vergar-se perante o novo imperador.

Construímos uma submissão política, económica e militar a Washington que nos tem manietados. Não aguentaríamos uma guerra tarifária, amarrámo-nos aos interesses estratégicos e militares dos EUA, marginalizámos todos os que defenderam um caminho autónomo. E passámos os poderes nacionais para uma estrutura que nos diziam ser a única com escala para enfrentar este tipo de desafios, mas que, em troca dessa escala, não tem autoridade e capacidade para os enfrentar.

O MNE francês já veio dizer que, perante as investidas de Musk e companhia, “ou a Comissão Europeia aplica com a maior firmeza as leis para proteger o nosso espaço público ou terá de devolver aos Estados a capacidade para o fazer". Mas a extrema-direita já fez o seu ninho em Bruxelas e nos principais governos nacionais, mandando ou condicionando. Temo que seja tarde demais.»


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