25.11.25

25 de Novembro: memória e disputa política

 


«No imediato pós-transição, o 25 de Novembro tornou-se a primeira data a ser formalmente evocada pelo Estado democrático em construção. Como argumentámos no artigo de ontem, as cerimónias instituídas por Ramalho Eanes em 1976 (meses antes da estreia das primeiras cerimónias oficiais do 25A na Assembleia da República, que só ocorreria em abril de 1977) procuraram, acima de tudo, preparar o controlo civil sobre os militares, transformando o 25 de Novembro num símbolo de normalização democrática.

Ao nível político-partidário, foi sobretudo o CDS que quis apropriar-se desse enquadramento, apresentando o 25 de Novembro como fronteira moral entre democracia e comunismo. No entanto, no primeiro ano de comemoração da data, também o PS e o PCP competiram pela definição pública do 25 de Novembro: o PCP tentou reinscrevê-la na matriz antifascista da democracia, defendendo que o 25 de Novembro deveria celebrar a unidade nacional em torno da Constituição e não a vitória de um campo político sobre outro, enquanto o PS procurou liderar um consenso simbólico que ancorasse o 25 de Novembro à sua visão de “socialismo democrático”. Porém, a crescente polarização entre o PS e Eanes e o avanço do CDS como "empreendedor mnemónico" acabaram por conduzir os socialistas a uma posição defensiva, recentrando-se no 25A.

Ao longo das décadas seguintes, consolidou-se o consenso em torno do 25A como marco fundador da democracia — um significado que nenhuma força parlamentar contestava –, enquanto o 25 de Novembro ia perdendo centralidade, apesar das tentativas do CDS para o manter vivo. Este equilíbrio frágil alterou-se a partir de 2015, com a solução governativa adotada pelo PS sob a liderança de António Costa. Ao aproximar-se da esquerda, o PS deu o mote para a reabertura da disputa e o 25 de Novembro deixou de ser uma memória marginal para se tornar um ponto estratégico de competição simbólica. Entre 2015 e 2018, PSD e CDS ensaiaram na Assembleia da República várias táticas para fixar uma leitura institucional da data, com o PSD a oferecer um apoio discreto, mas regular, aos votos de saudação e congratulação apresentados pelo CDS na Assembleia da República. Os textos apresentados oscilavam entre versões mais inclusivas ou claramente anticomunistas, levando o PS a variar entre abstenção, oposição e apresentação de propostas próprias que tentavam despolitizar o tema, enquanto à sua esquerda se rejeitava qualquer tentativa de canonização. O resultado foi uma indefinição quanto ao significado da data sem que se tenha conseguido fixar nenhum enquadramento.

A partir de 2019, com a entrada na Assembleia da República, no campo da direita, do Chega e da Iniciativa Liberal, esta disputa passou a representar um novo campo de batalha. Ambos reivindicaram uma narrativa própria da transição. O Chega radicalizou o discurso, tentando substituir a matriz antifascista da democracia por uma matriz anticomunista e apresentando o 25 de Novembro como o verdadeiro “Dia da Libertação”. O apagamento do papel das esquerdas democráticas e da participação cidadã ativa permite ao Chega projetar um novo mito de origem em que a ordem é restaurada por forças salvadoras e a democracia é entendida como antagonismo à esquerda, e não ao autoritarismo. A IL procurou uma versão liberal-institucional que celebrasse a “normalização democrática”, insistindo na dupla celebração. O CDS, regressado ao Parlamento em 2024 depois de um curto interregno, retomou a sua tradição identitária, mas tinha agora de disputar o espaço com os novos atores. O PSD, que historicamente se colocara numa posição de apoio discreto, procurou firmar uma narrativa própria e mais moderada do 25 de Novembro: não polarizante, mas inequivocamente afirmativa da centralidade do 25 de Novembro na consolidação da democracia. Na primeira cerimónia oficial na Assembleia da República, destacou o papel de Mário Soares e da luta contra a unicidade sindical, num gesto de inclusão estratégica que contrastava com o tom mais confrontacional do resto do campo da direita. Esta diversidade discursiva evidenciou o facto de que, mesmo com institucionalização parcial, o 25 de Novembro continua a funcionar como campo de disputa simbólica, em que a memória do passado serve finalidades distintas no presente.

A aprovação da Resolução do Conselho de Ministros n.º 132-A/2025, que criou as comemorações oficiais do 50.º aniversário do 25 de Novembro, marcou o ponto mais alto deste processo até à data. O diploma fixa uma leitura que desloca o centro simbólico da democracia do 25A para o 25 de Novembro, institucionalizando uma memória que se vinha associando à direita. É aqui que a partilha de poder neste Governo de coligação PSD-CDS parece ganhar expressão. O protagonismo assumido pelo parceiro de coligação CDS, que está agora ameaçado pelos novos atores à direita, denota a verdadeira origem deste projeto. Ao mesmo tempo, a reação do PS — recusando integrar a comissão e propondo um programa alternativo — mostra que a canonização continua longe do consenso. A cerimónia parlamentar de 2024 confirmou essa divisão: PSD, IL e CDS afirmaram explicitamente o 25 de Novembro; o Chega tentou redefinir o pacto fundacional; PCP, Livre e BE, de formas distintas, estão juntos na recusa da canonização da data e, acima de tudo, na sua equiparação ao 25 de Novembro. O PS, dividido entre a sua história e a sua posição atual, tem permanecido num equilíbrio difícil.

Se há cinquenta anos o 25 de Novembro dividiu os vencedores da transição, hoje divide o campo político num cenário mais fragmentado. A disputa da memória não é um resíduo do passado: é um instrumento ativo da competição partidária. O que está em jogo já não é apenas como recordar 1975, mas quem define o enquadramento simbólico da democracia portuguesa.»


1 comments:

Albino Manuel disse...

Precisamos de mais 10/15 anos. Para esta velharia de um lado e do outro morrer toda e a excitação sobre a data passar a ser igual à do 15 de Outubro de 1921. O que é que houve nessa data? Sei lá.