28.12.19

Centeno, o nosso Joker?



«”Joker” não foi o melhor filme do ano. Mas foi o mais influente. O Joker saltou dos ecrãs de cinema e conquistou as ruas. Esteve em todas as manifestações que abanaram os pilares da ordem estabelecida. O Joker não é de esquerda, nem de direita. É um enigma. Não está interessado em divertir-nos. Pelo contrário, no filme e nas ruas, quer causar dor e devolver ao mundo o que sofreu.

No filme, começa por ser um palhaço sem piada. Mas, depois, o espectador deixa de ter vontade de rir. Este Joker é sério: ri, mas não está aqui para nos contar piadas. O sorriso do Joker é o do caos. A sua ordem é a desordem. A interpretação de Joaquin Phoenix tornou-o símbolo da indignação em todo o planeta. E esta, tem-no provado sucessivas eleições, trocou o jogo de cartas político. Os ases trunfo do passado já não são sinónimo de triunfo.

Há um Joker no nosso pequeno mundo político? Rebuscando bem, só se consegue descortinar alguém que, não sendo o Joker, está sempre a sorrir: o sr. Mário Centeno. Há, desde logo, uma grande diferença entre ambos: o Joker é um perdedor. O sr. Centeno era, até há pouco tempo, o vencedor. Todos, no Governo, usavam um “pin” com a sua face e todos tentavam imitá-lo a sorrir. Cansaram-se.

Enquanto sorria, o sr. Centeno aumentava os impostos, fazia cativações, não assinava transferência de verbas. Como aprendiz de Joker chegou mesmo a dizer que já tinha assinado a autorização para se contratarem quatro mestres para os barcos da Soflusa.

Quando um ministro da Finanças tem de autorizar pessoalmente contratações de pessoal de uma empresa, não precisamos de um Joker para desestabilizar. Com mais ou menos sorriso, ele está dentro do poder a fazer mais estragos do que dezenas de manifestações nas ruas.

Mas o sr. Centeno não é o Joker. Às vezes sonha ser Batman. Sonha com o equilíbrio orçamental. Com a ordem acima do caos. Só que essa ordem começou a dinamitar os pilares da estabilidade social. E, claro, as emoções dos eleitores. Recorde-se Joker – são os cortes do orçamento para o apoio social e para os medicamentos que levam Arthur (Joaquin Phoenix), à loucura.

O sr. António Costa deve ter ido ver esta nova versão de Joker antes do texto final do OE. As sociedades são hoje teias imprevisíveis. Como dizia Alfred, o fiel mordomo de Bruce Wayne, em “The Dark Knight” (de 2008): “Alguns homens não buscam coisas lógicas como o dinheiro. Não os podes comprar, nem acossá-los, nem negociar com eles. Alguns homens, tudo o que querem, é ver como arde o mundo”. Foi a austeridade radical que atiçou o fogo na Europa liberal. E agora há quem esteja surpreendido porque as chamas se transformaram em radicalismo.

O Joker está para estes dias como a máscara usada por Guy Fawkes (e popularizada por “V for Vendetta”, a fantástica Banda Desenhada de Alan Moore) se tornou simbólica há uns anos nas ruas de todo o mundo. Fawkes, recordemos, tentou fazer explodir o Parlamento britânico em 1605 e assassinar o Rei.

Como muitos outros queria destruir a ordem vigente, para implantar outra. Mas o Joker de Joaquin Phoenix é o homem sem futuro de hoje, abandonado por uma sociedade insensível. Longe vão os tempos em que o Joker surgiu pela primeira vez, na década de 1940, pela mão de Bob Kane e Bill Finger. Era apenas um vilão. Quando Frank Miller o reinventou, na década de 1980, Gotham já era um lugar escuro onde não havia lugar para o Bem.

Num mundo corrupto, um homem musculado como Batman era a solução. Este mundo tem demasiadas analogias com o que vivemos hoje. O Joker não é Charlie Chaplin ou Buster Keaton, ou seja, uma face que, como estes, tenta reter a dignidade num mundo caótico. Eles, fazendo rir, tinham esperança no amor e nos seres humanos. O Joker não é nada disso: nada tem a perder. E já não quer saber se quem ri por último, ri melhor.»

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